Quem sou eu

Escritor,roteirista e pesquisador da história e cultura pantaneira, recebeu vários e importantes prêmios literários, entre os quais o “Brasília de Ficção”, com o romance “Raízes do Pantanal”. O conto, “Nessa poeira não vem mais seu pai”, ficou como finalista entre 967 concorrentes do Concurso Guimarães Rosa, promovido pela “Radio Françe Internationale” em Paris. O mesmo conto transformou-se numa peça de teatro produzida pelo Grupo Teatral Minas da Imaginação e, roteirizado pelo próprio Autor, num curta metragem infanto-juvenil, “A poeira”, atualmente exibido no Programa Curta-Criança 3 da TV-Brasil do Rio de Janeiro. O Conto "O caso de Joanita" foi roteirizado para um média metragem, dirigido e produzido por Reynaldo Paes de Barros. A sua obra é referência em teses monográficas e vem sendo analisada e estudada nas universidades de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul. Tem artigos, crônicas, contos, ensaios publicados em jornais, revistas, sites da Internet e entrevistas dadas a televisões e rádios nacionais e internacionais. Considera-se um ser mais biodegradável do que biografável, pois nasceu em Corumbá,MS, Cidade-Natureza.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

                                                          A COMITIVA

                                                                                    Augusto César Proença

         
         Amassando macegas, chapiscando a cascaria nas águas das vazantes, rasgando “pirizeiros” amolecidos, meio sonolenta - lá vai ela.
          Pelo silêncio intercalado de berros, um ou outro aboiar de vaqueiro, a gente nota que se acomodou pelos caminhos, perdeu a esperteza de querer “furar” e agora segue tranqüila, acovardada debaixo do sol quente, obedecendo o chamado do som das buzinas e das sinetas penduradas nos pescoços erados dos “sinuelos”.
         De vez em quando um esparramo. Barulho de cascos, abanar de rabos, roçar de chifres – corpos que se espantam assustados com o assanho dos marimbondos e das abelhas aninhadas numa moita de capim. Mas logo se sossega e retorna à marcha aborrecida de quem se distancia da querência e vai triste, berrando um berro doído, cansada de tantas laçadas, de tantos gritos, de tantos atropelos de patas de cavalos, forçando-a para que saia das sombras dos capões onde, inutilmente, tenta se amoitar –  lá vai ela, a boiada.
        É imponente o porte do “ponteiro” que lhe serve de guia. Homem prático,  perdeu a vontade de ter pressa e se resignou com a paciência. O pala enrolado na cintura por cima da “guaiaca”, chapéu de carandá, calça arregaçada nas canelas, bem aprumado – lá vai ele, soando seu berrante.
        Semelhante a um andarilho traz na alma a cadência das vaquejadas, o desejo dos errantes e a responsabilidade dos homens sérios. Sabe que está guiando uma riqueza, então se esmera. Como um cavaleiro andante tem a amplidão do espaço sob as patas do seu cavalo. O comando das rédeas é dele e faz disso a razão do seu existir. De longe, desaparece no “entrevero”, de perto parece espantalho forrado de poeira: rosto vermelho do sol, barba por fazer, olhar cismado nas estradas por onde passa, garganta ressequida, guardando ainda o gosto amargo dos tererés.
        Não se esqueceu do laço, do “guampo”, da bombinha prateada, da cabaça do mate, do “alforje” na garupa com os “pareios” das roupas, do “sapicuá” com a farinha e a rapadura, do “maneador” comprido, do “piraim” que “estrala” como soberano. Diferente dos bois, ele não tem nenhuma querência. Seu lugar é o mundo, seu mundo é o vagar. A modéstia de ser e de sentir fez dele um instrumento sem ambição. Divide com a natureza o despojar e em cada sombra de capão desanda a filosofar.
       Independente e livre, ele segue a própria trilha.  E no orgulho dos caprichos consegue ter pose de varão. É fruto da terra, é paisagem da terra, é a própria terra. Confunde-se com ela e faz parte da sua canção. Decanta-a nos escuros da noite enquanto o churrasco se assa, a roda se forma nos galpões e de cada peito nasce uma estória pra contar – lá vai ele, o “ponteiro”.
         Por detrás dele segue a comitiva, lenta, como os passos dos bois. É formada de gente “famaná”, que o acompanha nas andanças, escolhida a dedo, boa de laço, “guapa”, não se “aguacha” assim à toa, tem fibra, tem orgulho, divide com ele as serventias; enquanto dois “fiadores” seguem logo atrás firmando a caminha da boiada,  os “meeiros” ocupam as laterais, fazendo o gado andar e, bem atrás, na culatra, vai o condutor e dois culateiros, empurrando as reses que atrasam, cada qual com jeito próprio de aboiar, criando uma sinfonia.
         Manejadores de laços, esses vaqueiros trazem nas palmas das mãos as marcas dos “telegramas”. Nos dedos, a magia de trançar os “tentos” e amarrar o nó das “ligeiras”. Entram no mato feito heróis, desbravam capões, atropelam reses e, já no largo, em plena corrida, a laçada se abre no ar para se cerrar nos chifres sem mordiscar as orelhas. Então gritam gritos de velhos ancestrais, comemorando façanhas de bugres.
          Quando em roda são alegres; sozinhos, meio que cismam. Cismam em cima dos cavalos, nas sucessivas andanças, olhos atentos na marcha da boiada, qualquerestouro” já levou laço,  qualquer extravio de animal eles percebem  e são capazes de afirmar até a era do “caborteiro” pela contagem dos anos nos anéis dos chifres. Fazem da profissão um exercício de lazer. O trabalho os conduz à diversão. São livres que nem pássaros, andejos como bichos, alegres feito a natureza – lá vai ela, a comitiva.
         Há de parar antes do sol morrer. Há de encerrar a boiada ainda com o cantar dos pássaros. Há de chegar com estralos de pirains, gritos, gauchadas, entreverada com os animais e no meio da poeira que se levantará da “encerra”, cobrindo o espaço do mangueiro, filtrando os raios do sol com as cores dos arco-íris.


Glossário


Pirizeiro _conjunto de uma espécie arbórea conhecida como  piri, que só dá em terreno que nunca seca, de formato redondo, de onde o vaqueiro pega água limpa e fresca para o tereré. 

Furar _  É  quando uma rês escapa da vaquejada, em desabalada carreira.

Sinuelos _ Bois mansos, geralmente carreiros, que são utilizados como guias de uma boiada.

Ponteiro  _ É o vaqueiro que segue na frente de uma boiada, tocando o berrante. É o guia de uma comitiva.

Guaiaca _ É um cinto largo, de couro ou de camurça, provido de bolsinhos para guardar  dinheiro e objetos miúdos.  Serve também para o vaqueiro carregar revólver e munição.

Entrevero _ É estar no meio, entreverado com os animais e com os outros peões.

Guampo _ É feito de chifre de boi velho, utilizado para tomar tereré, água das baías e de pirizeiros.

Alforje _ Duplo saco de lona ou de couro, utilizado na parte de trás do arreio.

Pareios de roupas _ O mesmo que pares ou peças de roupas.

Sapicuá _ Espécie de embornal, onde se carrega a matula.

Maneador _  É uma corda comprida, de couro, utilizada para amarrar o animal numa árvore, num panlanque, com o objetivo de amansá-lo,  ou para amarrar as porteiras de vara do curral.

Piraim _ Espécie de chicote de cabo curto e corda de couro comprida, com o qual vaqueiro chicoteia o ar e faz estalar, produzindo um barulho de tiro.

Estrala _ O mesmo que estala.

Gente famaná _  Gente famosa

Guapa _  o mesmo que dizer: gente treinada, forte, valente.

Não se aguacha _  O mesmo que  dizer: não se cansa.

Fiadores _ São dois peões que seguem  logo atrás do guia, firmando a caminhada da boiada e vigiando a possível  fuga de alguma rês.    

Meeiros _ São peões que seguem nas laterais da boiada e servem para empurrar  o gado, fazê-lo andar.

Culateiros _ São dois peões que seguem ao lado do condutor, bem atrás da boiada, na culatra, empurrando a reses que atrasam.

Condutor _ É o  chefe da comitiva, quem contrata a peonada para fazer as empreitadas das conduções de boiadas. Quem forma a comitiva.

Telegramas _  São as marcas de um laço na palma da mão, quando  a corda corre  na mão de um vaqueiro em uma laçada e  queima em carne viva, deixando suas marcas.  

Tentos _ São tiras finas de couro já preparadas para trançar o laço.

Ligeiras _ São os nós falsos que os vaqueiros dão nos chifres dos baguais para que estes não carreguem o laço, quando soltos.

Estouro da boiada _ É quando a aboiada se assusta e sai da marcha em desabalada carreira, Foge para dentro dos capões (matos) e até arrebenta cerca de piquetes e de curral.

Caborteiro _ O mesmo que safado. Animal que não se pode confiar nele.

Encerra _ Duas mangas de cercas reforçadas, conhecidas como calefão, por onde o gado passa para entrar no curral.

(Toda comitiva tem o seu rancheiro (cozinheiro) que segue bem à frente para parar na sombra de capão, perto de uma baía ou mesmo de um pirizeiro para fazer a bóia).

Cargueiro _ Cavalo ou burro que vai com o rancheiro carregando a bruaca cheia de mantimentos e a carga da comitiva.

Bruaca _ Saco ou mala de couro cru usada para transporte de objetos e mercadorias.

Tropa de reforço _ Muares e cavalos resistentes que substituíram os animais que cansam durante as sucessivas marchas de uma comitiva.

Marcha _  Espaço percorrido pela boiada de um pouso a outro, no período de um dia.

Polaqueiro _ Cavalo ou burro que carrega o cincerro (sino) no pescoço, servindo de guia à tropa de reforço.


Um comentário:

  1. Maravilhosa poesia, estou começando a escrever,os temas são sobre peões e comitivas,gostei muito da sua poesia parabens

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