Quem sou eu

Escritor,roteirista e pesquisador da história e cultura pantaneira, recebeu vários e importantes prêmios literários, entre os quais o “Brasília de Ficção”, com o romance “Raízes do Pantanal”. O conto, “Nessa poeira não vem mais seu pai”, ficou como finalista entre 967 concorrentes do Concurso Guimarães Rosa, promovido pela “Radio Françe Internationale” em Paris. O mesmo conto transformou-se numa peça de teatro produzida pelo Grupo Teatral Minas da Imaginação e, roteirizado pelo próprio Autor, num curta metragem infanto-juvenil, “A poeira”, atualmente exibido no Programa Curta-Criança 3 da TV-Brasil do Rio de Janeiro. O Conto "O caso de Joanita" foi roteirizado para um média metragem, dirigido e produzido por Reynaldo Paes de Barros. A sua obra é referência em teses monográficas e vem sendo analisada e estudada nas universidades de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul. Tem artigos, crônicas, contos, ensaios publicados em jornais, revistas, sites da Internet e entrevistas dadas a televisões e rádios nacionais e internacionais. Considera-se um ser mais biodegradável do que biografável, pois nasceu em Corumbá,MS, Cidade-Natureza.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011


SOLIDÃO

                                                         Um conto de Luciano Alonso

Alberto estava triste, fazia já meses que não tinha vontade de fazer nada. Abria a geladeira sem vontade, olhava,olhava, pegava algo, murmurava coisas sem sentido e se arrastava devagarinho até o sofá. Experimentava todos os canais, nem sequer tinha forças para sentir raiva, apenas contrariedade. Não se dava ao trabalho de desligar a TV, abandonava a sala, deitava em sua cama e olhava para o teto, as vigas sob o eternit traziam-lhe a idéia de suicídio, pensava nas cordas que poderia usar para enforcar-se, divagou,  seus pensamentos correram pela mente, tinha preguiça, adormeceu.
Quando acordou viu que havia escurecido, sentiu medo. Estava só, nesses dias a depressão o impediu de sair de casa. Sentiu vontade de ver pessoas, parecia que não via pessoas há muito tempo. Era tarde, melhor ficar em casa. “Amanhã quando o sol nascer, quando amanhecer, tem tanta coisa que quero fazer, conhecer pessoas, olhar os jardins, andar...”.
Tomou um diazepam e adormeceu feliz pensando nas coisas legais que ia fazer no outro dia.




Mural
“BOA TARDE, BOA TARDE, MAIS UM ANO PASSOU...”

                                                Augusto César Proença
      
      Corsos de colombinas e pierrôs enleados em serpentinas, cordões como Pau Rolô, Sempre Viva, Rojão da Mocidade, e blocos como o Mama na Burra e Pancada  de Cego faziam a festa na Av. General Rondon, quando ainda não rolava desfiles de escolas de samba.
        Nos anos 30 do século passado, um folião se destacou: era o Mané Só, todos os anos botava seu cordão na rua, tendo como mascote um menino negro, magrinho, chamado Flaviano da Conceição, o Favito, que cresceu ali pelo Bairro da Cervejaria e se tornou figura das noites corumbaenses, boêmio, puxador de samba, querido dos carnavalescos que o auxiliaram a fundar e a levar em frente a Escola de Samba Flamengo, várias vezes campeã  dos velhos carnavais.
        O carnaval corumbaense foi se desenvolvendo e novos cordões surgiram, todos eles com nomes poéticos: Pingo de Amor, Cravo Vermelho, Paraíso dos Foliões, Estrela Azul, Flor de Corumbá... Aliás, os cordões (desaparecidos nos outros locais) em Corumbá continuaram a desfilar e garantem até hoje a tradição do Carnaval, a exemplo do Cravo Vermelho, Paraíso dos Foliões e Flor de Corumbá, os pioneiros.
        Os marinheiros de Ladário trouxeram para Corumbá a primeira Escola de Samba. Chamava-se Deixa Falar. Esses marujos eram do Rio de Janeiro e com eles vieram o ritmo, a cadência e a ginga do carioca sambar.
        Uma coisa interessante é que nos anos 40, 50 e 60 do século passado existiam os “avanços carnavalescos” nos clubes da cidade, conteciam nos fins de semana, meses antes da folia de Momo começar. O Rei Momo e a Rainha eram acompanhados por dois príncipes e duas princesas que percorriam os bailes dos clubes (muito concorridos por sinal). Iam ao Corumbaense, ao Riachuelo, ao Grêmio dos Subtenentes e Sargentos, ao Marítimo, aos clubes de Ladário e não deixavam de “subir o morro” para dar uma passadinha no salão da saudosa Maria Mulata.
        Blocos formados por criativos rapazes da sociedade animavam os desfiles e acendiam as chamas da animação dos carnavais de outrora. O Formigueiro, o Turista, o Can-Can, o dos Brotinhos deixaram marcas e fizeram a glória dos salões e das ruas.
        Sim. Os carnavais corumbaenses deram exemplo de animação, de espiritualidade nas fantasias e nas piadas de salão.
       Os blocos de sujos e as “batalhas de confetes” realizavam-se na Rua Frei Mariano e na Avenida General Rondon, sempre acompanhados pela Banda de Música do 17º Batalhão de Caçadores. A mais famosa das batalhas de confetes foi a do carnaval de 1946, o “Carnaval da Vitória”, o primeiro após a vitória das forças aliadas na II Guerra Mundial.
        Nesse carnaval de 46 os “formigas” (rapazes irreverentes do bloco Formigueiro) resolveram fazer crítica à crise econômica do pós-guerra e às greves que aconteciam em todo país. Desfilaram na Avenida puxando uma carroça com um jegue desacorçoado em cima. Na carroça estava escrito: “guerra dos burros!”.
        No carnaval de 52, apesar da chuva, sagrou-se campeã das escolas a Ditadores do Samba. É necessário afirmar que repórteres de jornais do Rio e São Paulo vinham cobrir o ”enterro dos ossos”, outra tradição do carnaval corumbaense.
        E o carnaval de 1960 chegava com a música: “Hei, você aí, me dá um dinheiro aí...” o dinheiro (como sempre) não estava fácil para o povo, mas a festa foi um barato, pernas de todo lado, até o poeta Clio Proença comentou no jornal O Momento na sua coluna Marolas: “Meninos, este carnaval que passou só deu pernas. Pernas finas, grosas, pretas, brancas, cabeludas e tortas. Pernas femininas! Este carnaval mostrou que para brincar e pular é preciso ter pernas!”.
        Com pernas ou sem pernas de fora, quem faturou nesse carnaval de 60 foi a Escola de Samba Flamengo e os cordões Cravo Vermelho e Paraíso dos Foliões, dobradinha infalível de muitos carnavais.
        E como história se faz de lembranças, a Escola de Samba Império do Morro, sob o comando do Chá Ana e da Dona Venância, carnavalescos de “chapa e cruz”, saiu com aproximadamente 1800 componentes no carnaval se 1985. A Imperatriz, da família Cambará, foi outra escola que levou animação para a avenida e fez a alegria dos antigos carnavais.
        As músicas eram cantadas com vibração. Nossos compositores (como hoje) faziam marchinhas e sambas-enredo em cima de temas que falavam da história da cidade, da fauna e flora pantaneiras, do lendário vapor Fernandes Vieira e da Cidade de Corumbá, vapores que ligavam Corumbá a Porto Esperança.
          O carnaval corumbaense atravessou um tempo histórico e hoje vem se profissionalizando e se destacando cada vez mais.            
          Ele não está morrendo como muitos falam, apenas sofreu mudanças infraestruturais, não é mais aquele, o tempo é outro, as músicas também são outras, o gosto da galera ainda se prende às bandas baianas. Até os desfiles das Escolas de Samba são diferentes, mais dinâmicos, mais iluminados, mais frenéticos: a Pesada, a Vila Mamona, a Mocidade Independente da Nova Corumbá, a Império do Morro, a Caprichosos de Corumbá e tantas outras, atraem turistas e divisas ao município.
         Daqueles velhos carnavais só restam imagens em preto e branco. Cabe a nós então resgatá-las para que não sejam varridas pelo tempo do esquecimento. Cabe a nós o trabalho de contar o universo de encanto e magia que sempre envolveu a cidade: traços da sua história, valor do seu patrimônio – porque isso são Cultura e Educação.
         Deixem as bandas baianas fazer a hora da moçada com guitarras eletrizantes e trios elétricos sonoros. Não se preocupem com elas, um dia passarão. Deixem que rebolem os bunbuns e soltem as frangas! Que povo corumbaense, neste carnaval de 2011 vai mostrar alegria e tradição, não se esquecerá de esquentar os tamborins, as cuícas e os pandeiros. Não vai deixar de cultivar a espontânea alegria da sua arte e da sua cultura, para cantar com vibração o tradicional e já clássico: “Boa tarde, boa tarde, nós estamos aqui, com o Flor de Abacate pra sambar até cair. No trabalho e na luta mais um ano passou, Flor! Flor! Flor! Carnaval já chegou...”
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Augusto César Proença é escritor corumbaense.




sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Av. General Rondon - Corumbá
A Escadinha Centenária
Meninos no chafariz do Porto de Corumbá
            Um Passeio Secular

                                                   
                                  Crônica de Augusto César Proença

        
         Ainda é cedo. A manhã de setembro me convida a um passeio e eu aproveito o tempo para caminhar pelas ruas da minha cidade, buscar sua identidade, cavucar suas raízes.
         No céu há um prenúncio de seca. A fumaceira das queimadas invade cruelmente o Pantanal e a manhã está calma, indiferente a tudo, parece não saber que há 221 anos Corumbá nascia diante de uma tosca cruz de madeira, sob a bênção de Cristo e a inabalável fé dos homens.
         Percorro a Avenida, passo por casarões históricos, praças, estátuas envelhecidas, ruas pouco arborizadas. Um resto de melodia dos séculos passados me carrega para um tempo em que espanhóis navegavam pelo rio Paraguai à procura de caminhos que os conduzissem às montanhas de prata do Peru.  Também, para um tempo em que hordas de homens barbudos, chapéus de enormes abas ao vento, arrasavam povoados jesuítas. Nuvens de fumaça subindo entre flechas resistentes, cheio de pólvora e sangue, gritos de guerra, corpos pagãos e cristãos mutilados; afinal, mais de três séculos de lutas escreveram as páginas da nossa pré-história.
         Volto à realidade e um som de TV da padaria me dá bom dia. A manhã é alegre. Pessoas balançam de felicidade. Entro na padaria, compro uns pães e saio com a sensação de estar partindo para a guerra. Ouço, nitidamente, o soar de uma clarineta chamando a brava gente brasileira para a luta. A terra novamente vai se cobrir de gritos e sangue. Tantos irmãos feridos, tantos irmãos mortos na guerra injusta. Mas eis que a Vila de Corumbá, num fremir de contentamento, vê chegar o tenente coronel Antônio Maria Coelho comandando a tropa que a libertará.
         Penso em tudo isso enquanto os meus passos batem contra as calçadas modernas: sim, é preciso buscar as identidades, cavucar as raízes, para que não sejam exterminadas neste mundo globalizado. Da minha memória saltam bigodes, bengalas, espartilhos, perucas de uma época de fausto. Vapores atracam no porto onde casarões se erguem anunciando um novo tempo. É o grande passado fluvial que entra em cena. Corumbá vive momentos de glória e o som de uma flauta me enleva e me entorpece. Acordes de uma ária há muito diluídos no espaço.
         Passo pelo prédio onde funcionou o Cine-Teatro Excelcior. Ouço as vozes comemorativas da passagem do cinema mudo para o cinema falado. Suaves ondulações do som provocado pela pequena orquestra que costumava tocar nos intervalos dos filmes. Revejo cenas. Sinto as vibrações de várias épocas. Imagens que o tempo levou e escuto, de repente, o sino da Matriz badalar naquele remoto 1877. Frei Mariano de Bagnaia, com o próprio punho, chama a população para ouvi-lo rezar uma missa nesse santo local construído pelas suas mãos franciscanas. Me dirijo para a Igreja. A rua está festiva. Faixas e cartazes alardeiam os 221 anos da cidade. Há perspectivas de progresso, o turismo ecológico e cultural desponta e toma um novo rumo: aleluia! Aleluia!...
         Entro na Igreja com o coração cheio de esperanças conduzido pela alma sorridente do Frei Mariano. Me ajoelho olhando Jesus lá no altar crucificado. É uma imagem envelhecida, de barro, mas tenho fé nesse secular símbolo sagrado e rezo. Rezo com todo o fervor, para que a minha cidade e o seu povo tenham vida nova, livre, justa e feliz.   

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

EXERCÍCIO DO ENCANTAMENTO

                                             Crônica de Augusto César Proença

Kelsang Palsang, que por incrível que pareça é brasileira, reside em São  Paulo e é uma pessoa zen desde quando se transformou numa monja budista, já há algum tempo deu uma entrevista à Revista Cláudia sobre um tema bastante curioso: o “Exercício do Contentamento”.

O que vem a ser isso? Não é nada mais do que um treinamento para ser feliz, quer dizer, a monja treina pessoas para a felicidade.

Para ela, que foi uma agitada militante política na época de ditadura e  sofreu as agruras do exílio, todo mundo pensa que felicidade é alcançar determinados sonhos, como sucesso profissional, ter casa bonita, um bom casamento, fazer viagens maravilhosas.

No entanto, segundo ela, muitas pessoas que já alcançaram essas metas perderam a graça, vivem entediadas, não se contentaram e estão sempre buscando algo novo, novas metas de vida.

Felicidade, para ela, então, não se encontra nas condições exteriores, depende da “mente” de cada um de nós. E uma maneira de se mudar a forma mental  é por meio da “meditação”

É claro que não precisa ser aquela meditação tradicional, a pessoa sentada, pernas cruzadas, totalmente absorta, olhando o vazio, nada disso! A técnica da monja é simples.

Ela aconselha que cada um preste atenção nas suas atitudes diárias como uma forma de meditar. É exercício que parece banal, mas traz, diz ela, enormes transformações por meio da “prática do contentamento”.

A pessoa pensa no que já se tem. Em geral, fazemos o contrário, olhamos para o que não temos, estamos sempre desejando coisas dos outros, buscando o que nos falta. Vamos perceber então que somos sadios, temos duas pernas para caminhar, olhos para olhar, voz para falar, sentimos o gosto dos alimentos, apreciamos um bom sorvete e por ai vai, até que chegamos à conclusão de que não possuímos quase nada para reclamar e tudo para se contentar. Ela promete que praticando constantemente esse “exercício do contentamento”, ele acaba criando em você uma motivação positiva e muito poderosa.

Entre outras verdades, a monja nos ensina também que precisamos de bens materiais, boa convivência com amigos, boa alimentação, relacionamento sexual constante, porque a paz interior não implica em abrir mão dos pequenos prazeres da vida.

E adverte: saber aceitar as dificuldades é uma forma de sabedoria!

Nestes tempos de tanta coisa horripilante acontecendo, tantas cenas de arrepiar nos são mostradas nos veículos de comunicação, que nos descontenta e às vezes até enraivece, será uma boa a gente praticar o exercício da monja para canalizar o pensamento às coisas positivas e assegurar a tranqüilidade e a paz  sempre  desejadas. É isso aí.












sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Redes
A HORA DA SESTA

                                                                                      Crônica de Augusto César Proença

A CIDADE: por estas horas fica assim do jeito que está. Quase sem nenhum barulho, a não ser zumbidos de moscas, asas batendo contra as telas querendo sair de quartos abafados, um ou outro ruído de ventilador borrifando ar quente, gemidos de punhos de rede, tarde toda, se embalando, em varandões de samambaias.
Movimentos desacontecem neste tremelico de ar turvando a vista; mormaço, desde cedo esquentando águas de aljibes, aferventando o corpo do rio por onde lambaris passeiam sossegados.
A CIDADE: por estas horas você não sentirá fragrância de coisas vivas. Tudo o que vive parece morto, relumia apenas uma luz abafada, que brilha por brilhar e se perde nas distâncias, lá onde o rio serpenteia lento, quase de não se perceber, não fosse o rolar das ilhas de camalotes descendo-vagarosas, como que empurradas por águas de preguiça
Velhos não sentam em portas sombreadas, homens não tomam tereré, crianças não soltam pandorgas nem jogam bolitas. Pedreiras calcárias se emudecem armazenando o calor. E das entranhas dos buracões aparecem patas cabeludas de aranhas caranguejeiras tateando cantos umedecidos.
A CIDADE: por estas horas você não escutará grito de peixeiro e de aguadeiro, gemido de doente, voz de desesperado, sequer choro de recém-nascido. Diante das portas fechadas dos armazéns, dos bares e dos bilhares a tarde escorre pachorrenta e é inútil querer vislumbrar o mastro do vapor se chegando, a cor da bandeira tremulando em cada apito, chaminé soltando fumaça preta e desenhando no céu rabiscos retorcidos.
Não há barulho de catraca, assobio de roda de carreta, ronco de máquina envelhecida. Chalanas estão por aí atracadas: chapiscos de água batendo nas proas envelhecidas. Lenços não abanam despedidas, ninguém chega, ninguém parte, ninguém desce a ladeira para ver o progresso chegar no casco do vapor.
A CIDADE: por estas horas você encontrará bêbados ressonando debaixo de árvores, gatas lambendo cios nas prateleiras mofadas dos velhos armazéns abandonados do porto, pessoas prostradas em redes, em catres, em colchões, putas estiradas nos ladrilhos, forradas de brotoejas.
Sem força para soprar a soneira do ar o vento parece que se estanca, nem brisa aparece para brigar com a violência do mormaço, que abafa, sufoca, entorpece, como para estufar por estas horas: A CIDADE.









quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

                                                                          
Canoas e Barcos

ASSIM COMEÇOU A HISTÓRIA DA NHECOLÂNDIA

Augusto César Proença

Tudo começou com Joaquim José Gomes da Silva (nascido em 1825), que se tornou o Barão de Vila Maria e era filho do Padre José Joaquim Gomes da Silva – o Padre Gomes -- e de Rosa Thereza Inocência do Nascimento, bugra de São Luiz de Cáceres, então Vila Maria. Em criança foi endiabrado como a maioria dos meninos do tempo da escravidão, que viam muita violência cometida contra os escravos e cresciam revoltados, praticando uma série de diabruras, algumas até bastante pesadas.
Uma de suas "artes", decerto a mais sacrílega de todas, foi a de ter, um dia, entrado na Igreja antes da missa, bebido o vinho do padre (não sei se do pai) e mijado no cálice, escandalizando a pacata e católica sociedade de Vila Maria. Em conseqüência dessa "arte" pegou o apelido de menino-diabo. Cresceu então meio esconjurado aos olhos dos adultos, que enxergavam nele um diabinho em forma de gente, sempre fazendo peraltagens nas brincadeiras de rua ou no quintal, quando batia na irmã mais nova, Augusta Amália, obrigando a mãe, Dona Inocência, a largar a roupa que lavava e pegar o relho para correr atrás dele.
Menino vivo, inteligente, arteiro, pau-prá-toda-obra, saco de pancada, assim cresceu até a juventude.
No entanto, em 1839, morre o Padre Gomes. Dele, além do pouco convívio, o filho recebe apenas uma herancinha, que tem de repartir com a irmã Augusta Amália Carolina do Nascimento: um pequeno espólio constituído de alguns escravos, móveis, livros e mais 305$ da "diária de ser deputado provincial", que a fazenda devia ao padre por serviços prestados. De posse dessa herança, ainda bem jovem, resolve casar-se. Para isso, requer do "Juízo Eclesiástico" dispensa de impedimento a fim de se unir com a prima pela parte materna, Benedita Fausta de Campos, de quem logo se enviúva e com quem tem um filho de nome Firmino.
Assim viúvo, parte o jovem Joaquim José para a vida de negócios que lhe possibilitará ganhar o pão-de-cada-dia. Torna-se mascate. E, viajando pelas estradas empoeiradas entre Cuiabá e Cáceres, habitua-se a parar na Fazenda Jacobina para descansar ou visitar os parentes ricos e ainda trocar olhares com a prima em segundo grau, Maria da Glória, menina ainda nova, não tão bonita, mas ajeitadinha, que passava de vez em quando pelo alpendre do casarão onde ele, barbudo e bem afeiçoado, conversava com o Major João Carlos ou com Dona Maria Josefa, a mãe da menina.
E tanto os olhares se cruzaram que os suspiros começaram a brotar do peito da menina; desde então, se trancava no quarto ou andava pelos cantos do casarão, com lágrimas aflorando aos olhos quando o primo, por necessidade, não passava pela Jacobina para as visitas costumeiras. Ficava horas debruçada na janela olhando a estrada, suspeitando que aquilo só podia ser amor já rondando o coração.
Um dia descobriram a verdade.
E foi num dia de muito sol, quando o Gomes apareceu depois de certo tempo e os dois, ao se despedirem, foram flagrados de mãos dadas no pátio da fazenda sob a sombra da mangueira. A menina foi repreendida severamente. Como podia uma Pereira Leite se encantar por um simples mascate e ainda bastardo, filho de padre? Repreendida outras vezes, caiu num profundo desânimo; ainda mais quando soube do castigo imposto ao primo: o de não botar mais os pés no sobrado da Jacobina.
Tristes dias aqueles para uma menina que não passava dos treze anos, em plena forma, em plena consistência para o amor...E também para ele, o Gomes, que passava pela estrada olhando de longe o casarão ensolarado, imaginando-a presa ali dentro daquelas velhas paredes, a deslizar o corpinho macio pelos vazios das salas, enquanto o cavalo e as mulas, carregadas de bugigangas, corcoveavam, tentando a todo custo se achegarem para baixo das sombras costumeiras das mangueiras. Depois de muito pensar o rapaz resolveu acabar com aquele suplício. Planejou tudo: o hora, a data... E numa noite escura em que o céu se forrava de nuvens negras, à beira da estrada, debaixo de uma figueira folhuda, sob a qual a escuridão era ainda mais solitária e pesada, esperou que ela descesse. No velho sobrado todos dormiam naquela madrugada de 1845. Podia-se ouvir as tosses de Dona Maria Josefa, os suspiros do menino Pedro Nolasco, os roncos do Major João Carlos, seu pigarro crônico escapando da garganta encharcada de muitos charutos, os resmungos e os rangeres de dentes das velhas criadas que dormiam no quarto detrás e deviam sonhar sonhos perturbados.
Dentro de seu quarto Maria da Glória havia preparado os lençóis. Estavam atados nas pontas, de modo a lhe servirem como um longa corda que, agora com as mãos trêmulas tentava amarrar na tramela da janela. Conseguisse firmar aquele nó e empurraria janela abaixo o emaranhado de lençóis pelos quais escorregaria ao encontro da nova vida. Mas demorava para fazer isto e Gomes se impacientava. "Será que não havia entendido o bilhetinho que lhe mandara pela ama escrava?". Olhava a silhueta dela meio escurecida, emoldurada pela luz da vela, e se sentia intranqüilo. A menina parece que se atrapalhava... De repente um barulho, ele percebeu que era um porco se coçando em algum pedaço de madeira que devia ter caído. As aranquãs revoaram por cima de sua cabeça, procurando espaço nos galhos. Gomes olhou os cantos escuros do pátio. O cavalo resfolegou no ar quente da madrugada e um cachorro latiu. Gomes prendeu a respiração, ajeitou-se na sela, olhou ressabiado para os cantos escuros do pátio: a Igreja, a grande roda d’água, um carro de boi repousando sob um pé de tamarindo e notou que tudo voltava ao silêncio de antes. Viu que a janela do quarto da menina também agora estava escura, ela havia sumido da moldura. Esperou um pouco: o coração se ajeitando no peito. E foi aí que viu um vulto sobressair do escuro da janela e descer. Descia apoiando os pés nas grossas paredes, enquanto as mãos sustentavam o corpinho que escorregava vagaroso. Então, num rápido galope, sem se importar com a cachorrada que latia esganiçada, ele a agarrou pela cintura e a botou rente ao corpo, e os dois partiram velozes para dentro da escuridão.
Houve um reboliço de frangos, galinhas e porcos assustados ao tropel da cavalo que distanciava do casarão. Dona Maria Josefa se despertou zonza. O major, os meninos, os criados e os escravos, todos acordaram - o casarão se sobressaltou.
Tropeçando nos gatos de estimação, a velha correu até o quarto da menina, abriu-o: vazio!. Olhou a janela aberta e viu a corda ainda balançando como se fosse uma comprida cobra branca subindo pela parede, e gritou com toda força dos seus pulmões: que a diabinha havia fugido.
O Major João Carlos reuniu a escolta. Fossem logo a procura do desgraçado. Mas naquele mesmo dia Maria da Glória e Joaquim José se casaram numa Igreja em Poconé. E de nada adiantou a escolta que fora ao seu encalço. De nada adiantaram as imposições, as brigas, as promessas, as velas e rezas para apagar a chama daquele amor indesejável, que venceu a tudo e a todos. Estava selado o destino de mais uma Pereira Leite que, decidida como a avó e a mãe, não se subjugara aos preconceitos e nem às manobras casamenteiras, feitas por conveniências. O Gomes se antecipara dando entrada aos papéis do casamento, havia requerido dispensa de impedimento por parentesco, e o padre que os abençoou, talvez por consideração ao seu finado pai, uniu-os para sempre.
Não podendo permanecer por aquelas paragens sobre pena de sofrer outras perseguições, ele pegou o caminho do Sul do Mato Grosso e foi para a fronteira distante, onde existia muita terra devoluta e possibilidades a quem tivesse ânimo, espirito de luta e certa perspicácia.
Assim, o casal fujão seguiu para Vila de Corumbá. Foram difíceis os primeiros tempos ali naquele lugarejo esquecido, de pouco mais de cem habitantes. Um povoado então empobrecido e cheio de problemas financeiros, cuja população vivia na miséria, entregue a uma ociosidade de fazer dó, constituída de muitos índios e brancos descendentes de indivíduos que foram deportados para o presídio outrora existente no local, nos tempos coloniais.
Mas pelo seu grande tino comercial, sua vontade de vencer, capacidade de trabalho, Joaquim José foi requerendo sesmarias a ponto de, já em 1847, ser o proprietário de uma porção delas, que se estendiam desde as montanhas minerosas do Urucum até os pantanais do Taquari, Paraguai e Jacadigo. No pé da serra do Urucum fez sua morada, fundando a Fazenda Piraputangas a poucos quilômetros de Albuquerque. A fazenda das Piraputangas passou a ser o núcleo de onde a prosperidade se irradiava para toda região, onde se abastecia a Vila de Corumbá e arredores. Necessário esclarecer que, em 1847, Corumbá ainda era um reduzido povoado, como bem narra Augusto Leverger (O Barão de Melgaço, de saudosa memória) no seu "Roteiro de Navegação do Rio Paraguai": (...) A sua posição é tão vantajosa quanto aprazível; o clima é sadio; o solo fértil; tem bons matos e proporções para o criação do gado; a pesca e a caça são abundantes. O terreno é calcário e é aqui que se fabrica o cal para as construções da Capital.Não obstante isso, a povoação em vez de prosperar, vai definhando. Estão caindo em ruínas os dois melhores edifícios, que são uma capelinha e um pequeno quartel militar; a população que pouco passa de cem almas, vive miseravelmente e mal produz o necessário para sua subsistência (...)" (Apud, Raul Silveira de Mello, Corumbá, Albuquerque e Ladário, p.134).
Nessa atmosfera pouco próspera, o Gomes, como assim era conhecido, vive a segunda fase da sua vida de homem de negócios. Em contraste com a Vila, prospera, formando latifúndios nos quais cria gado e planta milho, arroz, feijão, mandioca, etc., para abastecer os povoados e suas propriedades. E, em 1856, com a abertura do rio Paraguai à navegação, trazendo "ventos favoráveis a favor de Corumbá", pôde, ele, então, dar saída ao gado e se expandir ainda mais, fundando a fazenda do Barranco Branco (Porto Murtinho) e as fazendas Firme e Palmeiras, entre os rios Taquari e Negro.
A 21 de junho de 1862, o Governo Imperial outorgava-lhe, aos 37 anos, o título nobiliárquico de Barão de Vila Maria. Título que dizem, permanecia nas gavetas do Imperador e deveria ser entregue ao seu cunhado, Major João Carlos Pereira Leite. Seu brasão d’arma era mais característico e original pela feição regionalista que o vestia: "Em campo de ouro um índio corta cana-de-açúcar. Vê-se na campanha azul carregada de piraputangas (peixes) de prata, com barbatana e ‘cauda de golas’. Embaixo podia-se ler as divisas: ‘Forum extendere factis hoc vitutis opus’." Segundo José de Mesquita, o Barão demonstrava não ter sido orientado a escolher aquelas figuras esculpidas no seu brasão; ali elas estavam graças a sua "rude sinceridade, que fora no amanho do solo, na faina nobiliante do trabalho que se solidificara a sua fortuna e se alicerçara seu prestigio".
E deixa bem claro que o Barão de Vila Maria foi um "self made man" (se é que podemos chamar assim alguém que viveu naqueles tempos fáceis de aquisição de glebas) que alcançou posição sócio-econômica invejável dentro do contexto provincial. Lutou e deixou de ser um menino-diabo, um bastardo e um simples mascate renegado, tornando-se Barão, título que lhe deu o "status" de senhor rural, confirmando o poder da grande propriedade no cenário político e econômico do país. E, desmentindo, talvez, os pensamentos dos primos fidalgos da Jacobina, que deveriam imaginá-lo um caça-dotes, pronto a abocanhar o bom quinhão que a Baronesa receberia como herança.
O casal teve dois filhos: José Joaquim e Joaquim Eugênio.
O primeiro, assassinado na Fazenda das Piraputangas; o segundo, desbravador e continuador da obra do pai, depois da Guerra do Paraguai.




Texto extraído do livro: Pantanal, Gente, Tradição e História.
TREZE DE JUNHO
Augusto César Proença

"A Retomada de Corumbá" aconteceu no dia 13 de junho de 1867.
Àquela época, Corumbá era apenas uma pequena vila à beira de um grande rio. Tinha um largo sombrio (onde hoje é a Praça da República), uma modesta capelinha, a cadeia, o quartel, o cemitério, algumas residências que se espalhavam ao redor desse largo e se adentravam por algumas ruas já traçadas e retas, obedecendo o plano urbanístico elaborado pelo almirante Raymundo Delamare. A Ladeira Cunha e Cruz, por exemplo, era apenas uma picada íngreme e mal ajeitada, dando acesso ao porto, onde algumas casas comerciais ainda resistiam desde a invasão paraguaia. O resto era a realidade de uma vila estagnada, esvaziada, cheia de doenças e pobrezas.
Por mais de dois anos, desde o dia 3 de janeiro de 1865, mantiveram-se os paraguaios como senhores absolutos da povoação, sem que fossem de nenhum modo importunados.
No entanto, o Dr. José Vieira Couto de Magalhães, assumindo o governo da Província de Mato Grosso, resolveu expulsar os inimigos do solo corumbaense. Aceitou o plano de ataque concebido pelo Capitão Antônio Maria Coelho, comissionou-o ao cargo de tenente-coronel e organizou três corpos expedicionários. O primeiro comandado pelo próprio tenente-coronel Antônio Maria Coelho, o segundo por ele mesmo, o governador, e o terceiro pelo major João Carlos Pereira Leite, que sairia de São Luís de Cáceres.
A 15 de maio de 1867, partia de Cuiabá o primeiro corpo expedicionário composto de 400 homens, embarcados em canoas, rebocados pelos vapores Antônio João, Corumbá, Jauru, Cuiabazinho e Alpha.
Os pantanais, ainda cheios, facilitaram as manobras do experiente comandante que, sabendo-se cercado por não menos experientes soldados, atacaria a Vila de Corumbá pelo sul e não pelo norte, para o qual deveria estar atento o inimigo. Assim, a tropa foi bater à margem esquerda do Baixo São Lourenço, no porto do Alegre. Os vapores voltaram para Cuiabá, enquanto as canoas, conduzindo a tropa, seguiram pelas águas da enchente, vencendo macegas, todos os imprevisíveis caminhos de uma noite escura, até chegarem ao Barrote, abaixo de Ladário, a 11 de junho. E, então, por ter-se extraviado um dos oficiais com seu pelotão, a coluna foi obrigada a seguir até o Rabicho, onde se deu o desembarque das canoas.
Na madrugada de 13 iniciou-se a marcha rumo à Vila de Corumbá. Uma marcha penosa. Antônio Maria Coelho e seus soldados tiveram que fazê-la com a água batendo na barriga, até alcançarem os morros e pegarem a velha estrada pela qual o Barão de Vila Maria costumava viajar para sua fazenda, nas proximidades do Morro do Urucum.
Os soldados brasileiros atingiram Corumbá numa tarde brusca e fria, pegando os paraguaios de surpresa, muitos estavam atacados pela epidemia da varíola.
A Retomada de Corumbá foi uma surpresa que causou mortes. Não foi fácil como muitos imaginam. Houve fuzilaria. Houve combate no qual perdeu a vida o Capitão Cunha e Cruz, como também muitos irmãos paraguaios, cujos corpos foram lançados ao rio. Houve o heróico combate do Alegre, durante o qual se destacaram, entre tantos, o capitão-tenente Balduino José Ferreira de Aguiar, o major Antônio da Costa e o soldado Chiba que, apesar de ter o corpo forrado de bexiga (a peste da época) sem camisa, todo esfolado pelas pústulas, o peito nu, a cintura em carne viva, não deixou de abrir fogo contra o vapor Salto de Guaíra, veloz navio de guerra paraguaio, mandado em perseguição às forças brasileiras.
A posse efetiva da vila não se daria no dia 13 de junho, como se esperava. Os paraguaios ainda permaneceram em Corumbá por mais algum tempo, porque o presidente da Província de Mato Grosso, alarmado com a epidemia de varíola, ordenou fosse a vila abandonada e os paraguaios, encontrando-a deserta, voltaram e a ocuparam novamente. Deixaram-na, finalmente, no dia 3 de abril de 1868.
Terminada a guerra com o Paraguai, Corumbá entrou numa fase de ressurgimento. A fronteira, é verdade, encontrava-se arrasada. Necessitou de bastante esforço para recuperá-la. É interessante afirmar que muitos paraguaios, depois da guerra, vieram para Corumbá e foram elementos fundamentais na reconstrução das ruínas e na recuperação das fazendas de gado. Trouxeram suas ferramentas, seus laços endurecidos, seus amargos tererés, suas lindas guarânias e foram apagando da lembrança coletiva as consequências de uma guerra injusta, formando uma sociedade de gente livre, forte, sobretudo amiga e fraterna.

Augusto César Proença é escritor autor de Pantanal, Gente, Tradição e História entre outros livros.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Pôr do sol visto de um barco - Rio Paraguai
                                                          A COMITIVA

                                                                                    Augusto César Proença

         
         Amassando macegas, chapiscando a cascaria nas águas das vazantes, rasgando “pirizeiros” amolecidos, meio sonolenta - lá vai ela.
          Pelo silêncio intercalado de berros, um ou outro aboiar de vaqueiro, a gente nota que se acomodou pelos caminhos, perdeu a esperteza de querer “furar” e agora segue tranqüila, acovardada debaixo do sol quente, obedecendo o chamado do som das buzinas e das sinetas penduradas nos pescoços erados dos “sinuelos”.
         De vez em quando um esparramo. Barulho de cascos, abanar de rabos, roçar de chifres – corpos que se espantam assustados com o assanho dos marimbondos e das abelhas aninhadas numa moita de capim. Mas logo se sossega e retorna à marcha aborrecida de quem se distancia da querência e vai triste, berrando um berro doído, cansada de tantas laçadas, de tantos gritos, de tantos atropelos de patas de cavalos, forçando-a para que saia das sombras dos capões onde, inutilmente, tenta se amoitar –  lá vai ela, a boiada.
        É imponente o porte do “ponteiro” que lhe serve de guia. Homem prático,  perdeu a vontade de ter pressa e se resignou com a paciência. O pala enrolado na cintura por cima da “guaiaca”, chapéu de carandá, calça arregaçada nas canelas, bem aprumado – lá vai ele, soando seu berrante.
        Semelhante a um andarilho traz na alma a cadência das vaquejadas, o desejo dos errantes e a responsabilidade dos homens sérios. Sabe que está guiando uma riqueza, então se esmera. Como um cavaleiro andante tem a amplidão do espaço sob as patas do seu cavalo. O comando das rédeas é dele e faz disso a razão do seu existir. De longe, desaparece no “entrevero”, de perto parece espantalho forrado de poeira: rosto vermelho do sol, barba por fazer, olhar cismado nas estradas por onde passa, garganta ressequida, guardando ainda o gosto amargo dos tererés.
        Não se esqueceu do laço, do “guampo”, da bombinha prateada, da cabaça do mate, do “alforje” na garupa com os “pareios” das roupas, do “sapicuá” com a farinha e a rapadura, do “maneador” comprido, do “piraim” que “estrala” como soberano. Diferente dos bois, ele não tem nenhuma querência. Seu lugar é o mundo, seu mundo é o vagar. A modéstia de ser e de sentir fez dele um instrumento sem ambição. Divide com a natureza o despojar e em cada sombra de capão desanda a filosofar.
       Independente e livre, ele segue a própria trilha.  E no orgulho dos caprichos consegue ter pose de varão. É fruto da terra, é paisagem da terra, é a própria terra. Confunde-se com ela e faz parte da sua canção. Decanta-a nos escuros da noite enquanto o churrasco se assa, a roda se forma nos galpões e de cada peito nasce uma estória pra contar – lá vai ele, o “ponteiro”.
         Por detrás dele segue a comitiva, lenta, como os passos dos bois. É formada de gente “famaná”, que o acompanha nas andanças, escolhida a dedo, boa de laço, “guapa”, não se “aguacha” assim à toa, tem fibra, tem orgulho, divide com ele as serventias; enquanto dois “fiadores” seguem logo atrás firmando a caminha da boiada,  os “meeiros” ocupam as laterais, fazendo o gado andar e, bem atrás, na culatra, vai o condutor e dois culateiros, empurrando as reses que atrasam, cada qual com jeito próprio de aboiar, criando uma sinfonia.
         Manejadores de laços, esses vaqueiros trazem nas palmas das mãos as marcas dos “telegramas”. Nos dedos, a magia de trançar os “tentos” e amarrar o nó das “ligeiras”. Entram no mato feito heróis, desbravam capões, atropelam reses e, já no largo, em plena corrida, a laçada se abre no ar para se cerrar nos chifres sem mordiscar as orelhas. Então gritam gritos de velhos ancestrais, comemorando façanhas de bugres.
          Quando em roda são alegres; sozinhos, meio que cismam. Cismam em cima dos cavalos, nas sucessivas andanças, olhos atentos na marcha da boiada, qualquerestouro” já levou laço,  qualquer extravio de animal eles percebem  e são capazes de afirmar até a era do “caborteiro” pela contagem dos anos nos anéis dos chifres. Fazem da profissão um exercício de lazer. O trabalho os conduz à diversão. São livres que nem pássaros, andejos como bichos, alegres feito a natureza – lá vai ela, a comitiva.
         Há de parar antes do sol morrer. Há de encerrar a boiada ainda com o cantar dos pássaros. Há de chegar com estralos de pirains, gritos, gauchadas, entreverada com os animais e no meio da poeira que se levantará da “encerra”, cobrindo o espaço do mangueiro, filtrando os raios do sol com as cores dos arco-íris.


Glossário


Pirizeiro _conjunto de uma espécie arbórea conhecida como  piri, que só dá em terreno que nunca seca, de formato redondo, de onde o vaqueiro pega água limpa e fresca para o tereré. 

Furar _  É  quando uma rês escapa da vaquejada, em desabalada carreira.

Sinuelos _ Bois mansos, geralmente carreiros, que são utilizados como guias de uma boiada.

Ponteiro  _ É o vaqueiro que segue na frente de uma boiada, tocando o berrante. É o guia de uma comitiva.

Guaiaca _ É um cinto largo, de couro ou de camurça, provido de bolsinhos para guardar  dinheiro e objetos miúdos.  Serve também para o vaqueiro carregar revólver e munição.

Entrevero _ É estar no meio, entreverado com os animais e com os outros peões.

Guampo _ É feito de chifre de boi velho, utilizado para tomar tereré, água das baías e de pirizeiros.

Alforje _ Duplo saco de lona ou de couro, utilizado na parte de trás do arreio.

Pareios de roupas _ O mesmo que pares ou peças de roupas.

Sapicuá _ Espécie de embornal, onde se carrega a matula.

Maneador _  É uma corda comprida, de couro, utilizada para amarrar o animal numa árvore, num panlanque, com o objetivo de amansá-lo,  ou para amarrar as porteiras de vara do curral.

Piraim _ Espécie de chicote de cabo curto e corda de couro comprida, com o qual vaqueiro chicoteia o ar e faz estalar, produzindo um barulho de tiro.

Estrala _ O mesmo que estala.

Gente famaná _  Gente famosa

Guapa _  o mesmo que dizer: gente treinada, forte, valente.

Não se aguacha _  O mesmo que  dizer: não se cansa.

Fiadores _ São dois peões que seguem  logo atrás do guia, firmando a caminhada da boiada e vigiando a possível  fuga de alguma rês.    

Meeiros _ São peões que seguem nas laterais da boiada e servem para empurrar  o gado, fazê-lo andar.

Culateiros _ São dois peões que seguem ao lado do condutor, bem atrás da boiada, na culatra, empurrando a reses que atrasam.

Condutor _ É o  chefe da comitiva, quem contrata a peonada para fazer as empreitadas das conduções de boiadas. Quem forma a comitiva.

Telegramas _  São as marcas de um laço na palma da mão, quando  a corda corre  na mão de um vaqueiro em uma laçada e  queima em carne viva, deixando suas marcas.  

Tentos _ São tiras finas de couro já preparadas para trançar o laço.

Ligeiras _ São os nós falsos que os vaqueiros dão nos chifres dos baguais para que estes não carreguem o laço, quando soltos.

Estouro da boiada _ É quando a aboiada se assusta e sai da marcha em desabalada carreira, Foge para dentro dos capões (matos) e até arrebenta cerca de piquetes e de curral.

Caborteiro _ O mesmo que safado. Animal que não se pode confiar nele.

Encerra _ Duas mangas de cercas reforçadas, conhecidas como calefão, por onde o gado passa para entrar no curral.

(Toda comitiva tem o seu rancheiro (cozinheiro) que segue bem à frente para parar na sombra de capão, perto de uma baía ou mesmo de um pirizeiro para fazer a bóia).

Cargueiro _ Cavalo ou burro que vai com o rancheiro carregando a bruaca cheia de mantimentos e a carga da comitiva.

Bruaca _ Saco ou mala de couro cru usada para transporte de objetos e mercadorias.

Tropa de reforço _ Muares e cavalos resistentes que substituíram os animais que cansam durante as sucessivas marchas de uma comitiva.

Marcha _  Espaço percorrido pela boiada de um pouso a outro, no período de um dia.

Polaqueiro _ Cavalo ou burro que carrega o cincerro (sino) no pescoço, servindo de guia à tropa de reforço.


São João descendo a ladeira Cunha e Cruz


Crianças no chafariz do porto



Reflexão no porto



Redes no cavalete



Oferendas



Ruínas

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

   
   
VELHAS  PALMEIRAS
                                                                         
                                                                    Augusto César Proença

Apesar da ingratidão dos homens vocês ainda resistem!
De longe são vistas  lá da curva do grande S que o rio escreve na paisagem,
De perto são as guardiãs desta cidade centenária.


Viram chuvas de confetes e serpentinas caindo nos sonhos de muitos carnavais.
Escutaram apitos de antigas embarcações,
Tantas retretas, tantas paradas de 7 de Setembro!
Participaram de encontros de várias gerações,
Segredos de alcovas, desavenças, alegrias...
De tudo souberam guardar silêncio.

Velhas palmeiras da avenida,
Quisera eu afogá-las em abraços,
Apalpar suas sílabas,
Sentir seus sussurros,
Poder ouvi-las assim bem de perto,
Cantando em coro a canção da minha infância!




Amanhecer no Paraguay

A LENDA DOS CONQUISTADORES IBÉRICOS

          Augusto César Proença

           Com esperança de encontrar as tais montanhas do Peru, tão faladas pelos índios Guarany, que davam “notícias” de uma serra que trovejava riquezas e de um vasto e riquíssimo reino comandado pelo Rei Branco, soberano senhor, construtor de estradas de prata e altares de ouro, a bacia do rio Paraguai começou a fazer parte de fabulosas histórias narradas sobre a América do Sul.
          Aventureiros portugueses e espanhóis formaram expedições e se lançaram à busca dessas “notícias”, já no início do século XVI.
           O primeiro a penetrar na região pantaneira foi o português Aleixo Garcia, náufrago de Juan Diaz de Sólis, famoso cosmógrafo, que a mando do rei da Espanha veio bisbilhotar a zona para ver se encontrava a lendária Serra da Prata e o encantado reino do Rei Branco, mas acabou morto e devorado, ele e a maioria dos seus companheiros, pelos Charruas, temidos nativos do Uruguai, logo após ter chegado ao estuário do então enigmático Rio da Prata.
         Aleixo Garcia, um dos sobreviventes da expedição de Sólis, ao voltar para a Espanha, numa caravela, sofreu naufrágio ao passar pelo Porto dos Patos, situado em frente à Ilha de Santa Catarina e foi obrigado a conviver por mais de oito anos com os índios da região, ouvindo “estórias” do Rei Branco e das lendárias minas do Peru.
         No ano de 1524 resolveu botar a limpo o que escutava da indiada e tentar a sorte. Organizou uma grande expedição e, acompanhado de dois mil índios Guarany, partiu da Ilha de Santa Catarina para realizar uma das mais aventureiras e fantásticas viagens da história da exploração da América do Sul.
          Seguindo o caminho de Peabiru, antiga trilha que os índios costumavam utilizar para ir do sul do Brasil ao altiplano boliviano, a expedição de Aleixo Garcia chegou aos arredores da atual cidade boliviana de Sucre. Atacou e saqueou objetos de ouro e prata das cidadezinhas fronteiriças com o Peru, mas, tal qual Juan Diaz de Sólis, ao regressar para a Ilha de Santa Catarina, repleto de objetos de ouro e prata, acabou sendo trucidado pelos indomáveis índios Payaguá, às margens do Rio Paraguai.              
             Foi uma pena, porque se Aleixo Garcia seguisse mais uns 200 Km adiante teria encontrado a tal Serra da Prata, que também não era uma lenda e sim um cerro quase que inteiramente de prata, conhecido pelos índios pelo nome de Potosí.
             Após a proeza do português Aleixo Garcia, expedições espanholas saíram de Assunção, atual capital do Paraguai, e seguiram em direção às montanhas do Peru, todas elas com interesse de conquistar os domínios do Rei Branco e o seu tesouro fabuloso.
         Porém, não tiveram sucesso. As que escaparam das flechadas e dos braços indígenas padeceram de fome, de sede, de febre palustre, de doenças várias e tiveram que retornar ao local de origem. Desistiram do empenho.  E para sempre.
         Existe uma lenda que diz que a Serra da Prata recebeu o nome de Potosí  (em quíchua significa “Montanha que Troveja”), quando o soberano Inca, Huayana Capac, mandou emissários para  explorá-la. Chegando lá os emissários ouviram ruídos estrondosos que julgaram ser a “voz” da montanha que teria dito: “Afastem-se daqui, afastem-se daqui! As riquezas desta montanha não são para vocês. Estão reservadas para homens que virão de além”.
         Só que os “homens que vieram de além” não foram os espanhóis de Assunção, que tentaram (em vão) chegar ao Peru pela bacia do rio Paraguai, atravessando a imensa planície pantaneira. Foram outros espanhóis aventureiros como os primeiros, comandados por Francisco Pizarro Gonzáles que, navegando oceanos distantes chegaram ao Peru, vasculharam os cumes das montanhas nevadas, subjugaram o Império Inca, a Serra da Prata, usurparam suas riquezas e massacraram toda a cultura de uma civilização andina das mais importantes da fase histórica conhecida como pré-colombiana. Iniciando um novo curso na história da América Espanhola!


Augusto César Proença é escritor, autor de Raízes do Pantanal entre outros livros.

   
         

RIO  DE  SONHO                                           
                                                                       Augusto César Proença
                        
Era ele que me convidava a escutar o silêncio das margens 
me trazia biguás estraçalha (dores) de peixes e
me dava de japa a inocência das garças.

Era ele que me jogava oferendas de flores
me trazia o ritmo encrespado das ondas de inverno e
me abria o sexo da menina em flor: seus segredos.

 Era ele que me espelhava o sol, a lua, a meia lua, a lua cheia
me acendia a chama que existia em mim-menino e
me levava a acompanhar suas curvas indecisas.

Mas hoje o rio de sonho me deixou de dar sonhos.
Vai perdendo sua força, sua pureza de rio absoluto.
Traz o veneno das fumaças e das quedas dos barrancos.
Traz poeira seca de minérios, punhado de peixes enredados: seus desesperos.

Hoje o rio que já foi de sonhos carrega a ferrugem das margens.
Curimbatá, Pacu, Dourado, Pintado são recursos do passado.
São saudades nas lágrimas dos meus olhos.