Quem sou eu

Escritor,roteirista e pesquisador da história e cultura pantaneira, recebeu vários e importantes prêmios literários, entre os quais o “Brasília de Ficção”, com o romance “Raízes do Pantanal”. O conto, “Nessa poeira não vem mais seu pai”, ficou como finalista entre 967 concorrentes do Concurso Guimarães Rosa, promovido pela “Radio Françe Internationale” em Paris. O mesmo conto transformou-se numa peça de teatro produzida pelo Grupo Teatral Minas da Imaginação e, roteirizado pelo próprio Autor, num curta metragem infanto-juvenil, “A poeira”, atualmente exibido no Programa Curta-Criança 3 da TV-Brasil do Rio de Janeiro. O Conto "O caso de Joanita" foi roteirizado para um média metragem, dirigido e produzido por Reynaldo Paes de Barros. A sua obra é referência em teses monográficas e vem sendo analisada e estudada nas universidades de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul. Tem artigos, crônicas, contos, ensaios publicados em jornais, revistas, sites da Internet e entrevistas dadas a televisões e rádios nacionais e internacionais. Considera-se um ser mais biodegradável do que biografável, pois nasceu em Corumbá,MS, Cidade-Natureza.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011


ASSIM COMEÇOU A HISTÓRIA DA NHECOLÂNDIA

Augusto César Proença

Tudo começou com Joaquim José Gomes da Silva (nascido em 1825), que se tornou o Barão de Vila Maria e era filho do Padre José Joaquim Gomes da Silva – o Padre Gomes -- e de Rosa Thereza Inocência do Nascimento, bugra de São Luiz de Cáceres, então Vila Maria. Em criança foi endiabrado como a maioria dos meninos do tempo da escravidão, que viam muita violência cometida contra os escravos e cresciam revoltados, praticando uma série de diabruras, algumas até bastante pesadas.
Uma de suas "artes", decerto a mais sacrílega de todas, foi a de ter, um dia, entrado na Igreja antes da missa, bebido o vinho do padre (não sei se do pai) e mijado no cálice, escandalizando a pacata e católica sociedade de Vila Maria. Em conseqüência dessa "arte" pegou o apelido de menino-diabo. Cresceu então meio esconjurado aos olhos dos adultos, que enxergavam nele um diabinho em forma de gente, sempre fazendo peraltagens nas brincadeiras de rua ou no quintal, quando batia na irmã mais nova, Augusta Amália, obrigando a mãe, Dona Inocência, a largar a roupa que lavava e pegar o relho para correr atrás dele.
Menino vivo, inteligente, arteiro, pau-prá-toda-obra, saco de pancada, assim cresceu até a juventude.
No entanto, em 1839, morre o Padre Gomes. Dele, além do pouco convívio, o filho recebe apenas uma herancinha, que tem de repartir com a irmã Augusta Amália Carolina do Nascimento: um pequeno espólio constituído de alguns escravos, móveis, livros e mais 305$ da "diária de ser deputado provincial", que a fazenda devia ao padre por serviços prestados. De posse dessa herança, ainda bem jovem, resolve casar-se. Para isso, requer do "Juízo Eclesiástico" dispensa de impedimento a fim de se unir com a prima pela parte materna, Benedita Fausta de Campos, de quem logo se enviúva e com quem tem um filho de nome Firmino.
Assim viúvo, parte o jovem Joaquim José para a vida de negócios que lhe possibilitará ganhar o pão-de-cada-dia. Torna-se mascate. E, viajando pelas estradas empoeiradas entre Cuiabá e Cáceres, habitua-se a parar na Fazenda Jacobina para descansar ou visitar os parentes ricos e ainda trocar olhares com a prima em segundo grau, Maria da Glória, menina ainda nova, não tão bonita, mas ajeitadinha, que passava de vez em quando pelo alpendre do casarão onde ele, barbudo e bem afeiçoado, conversava com o Major João Carlos ou com Dona Maria Josefa, a mãe da menina.
E tanto os olhares se cruzaram que os suspiros começaram a brotar do peito da menina; desde então, se trancava no quarto ou andava pelos cantos do casarão, com lágrimas aflorando aos olhos quando o primo, por necessidade, não passava pela Jacobina para as visitas costumeiras. Ficava horas debruçada na janela olhando a estrada, suspeitando que aquilo só podia ser amor já rondando o coração.
Um dia descobriram a verdade.
E foi num dia de muito sol, quando o Gomes apareceu depois de certo tempo e os dois, ao se despedirem, foram flagrados de mãos dadas no pátio da fazenda sob a sombra da mangueira. A menina foi repreendida severamente. Como podia uma Pereira Leite se encantar por um simples mascate e ainda bastardo, filho de padre? Repreendida outras vezes, caiu num profundo desânimo; ainda mais quando soube do castigo imposto ao primo: o de não botar mais os pés no sobrado da Jacobina.
Tristes dias aqueles para uma menina que não passava dos treze anos, em plena forma, em plena consistência para o amor...E também para ele, o Gomes, que passava pela estrada olhando de longe o casarão ensolarado, imaginando-a presa ali dentro daquelas velhas paredes, a deslizar o corpinho macio pelos vazios das salas, enquanto o cavalo e as mulas, carregadas de bugigangas, corcoveavam, tentando a todo custo se achegarem para baixo das sombras costumeiras das mangueiras. Depois de muito pensar o rapaz resolveu acabar com aquele suplício. Planejou tudo: o hora, a data... E numa noite escura em que o céu se forrava de nuvens negras, à beira da estrada, debaixo de uma figueira folhuda, sob a qual a escuridão era ainda mais solitária e pesada, esperou que ela descesse. No velho sobrado todos dormiam naquela madrugada de 1845. Podia-se ouvir as tosses de Dona Maria Josefa, os suspiros do menino Pedro Nolasco, os roncos do Major João Carlos, seu pigarro crônico escapando da garganta encharcada de muitos charutos, os resmungos e os rangeres de dentes das velhas criadas que dormiam no quarto detrás e deviam sonhar sonhos perturbados.
Dentro de seu quarto Maria da Glória havia preparado os lençóis. Estavam atados nas pontas, de modo a lhe servirem como um longa corda que, agora com as mãos trêmulas tentava amarrar na tramela da janela. Conseguisse firmar aquele nó e empurraria janela abaixo o emaranhado de lençóis pelos quais escorregaria ao encontro da nova vida. Mas demorava para fazer isto e Gomes se impacientava. "Será que não havia entendido o bilhetinho que lhe mandara pela ama escrava?". Olhava a silhueta dela meio escurecida, emoldurada pela luz da vela, e se sentia intranqüilo. A menina parece que se atrapalhava... De repente um barulho, ele percebeu que era um porco se coçando em algum pedaço de madeira que devia ter caído. As aranquãs revoaram por cima de sua cabeça, procurando espaço nos galhos. Gomes olhou os cantos escuros do pátio. O cavalo resfolegou no ar quente da madrugada e um cachorro latiu. Gomes prendeu a respiração, ajeitou-se na sela, olhou ressabiado para os cantos escuros do pátio: a Igreja, a grande roda d’água, um carro de boi repousando sob um pé de tamarindo e notou que tudo voltava ao silêncio de antes. Viu que a janela do quarto da menina também agora estava escura, ela havia sumido da moldura. Esperou um pouco: o coração se ajeitando no peito. E foi aí que viu um vulto sobressair do escuro da janela e descer. Descia apoiando os pés nas grossas paredes, enquanto as mãos sustentavam o corpinho que escorregava vagaroso. Então, num rápido galope, sem se importar com a cachorrada que latia esganiçada, ele a agarrou pela cintura e a botou rente ao corpo, e os dois partiram velozes para dentro da escuridão.
Houve um reboliço de frangos, galinhas e porcos assustados ao tropel da cavalo que distanciava do casarão. Dona Maria Josefa se despertou zonza. O major, os meninos, os criados e os escravos, todos acordaram - o casarão se sobressaltou.
Tropeçando nos gatos de estimação, a velha correu até o quarto da menina, abriu-o: vazio!. Olhou a janela aberta e viu a corda ainda balançando como se fosse uma comprida cobra branca subindo pela parede, e gritou com toda força dos seus pulmões: que a diabinha havia fugido.
O Major João Carlos reuniu a escolta. Fossem logo a procura do desgraçado. Mas naquele mesmo dia Maria da Glória e Joaquim José se casaram numa Igreja em Poconé. E de nada adiantou a escolta que fora ao seu encalço. De nada adiantaram as imposições, as brigas, as promessas, as velas e rezas para apagar a chama daquele amor indesejável, que venceu a tudo e a todos. Estava selado o destino de mais uma Pereira Leite que, decidida como a avó e a mãe, não se subjugara aos preconceitos e nem às manobras casamenteiras, feitas por conveniências. O Gomes se antecipara dando entrada aos papéis do casamento, havia requerido dispensa de impedimento por parentesco, e o padre que os abençoou, talvez por consideração ao seu finado pai, uniu-os para sempre.
Não podendo permanecer por aquelas paragens sobre pena de sofrer outras perseguições, ele pegou o caminho do Sul do Mato Grosso e foi para a fronteira distante, onde existia muita terra devoluta e possibilidades a quem tivesse ânimo, espirito de luta e certa perspicácia.
Assim, o casal fujão seguiu para Vila de Corumbá. Foram difíceis os primeiros tempos ali naquele lugarejo esquecido, de pouco mais de cem habitantes. Um povoado então empobrecido e cheio de problemas financeiros, cuja população vivia na miséria, entregue a uma ociosidade de fazer dó, constituída de muitos índios e brancos descendentes de indivíduos que foram deportados para o presídio outrora existente no local, nos tempos coloniais.
Mas pelo seu grande tino comercial, sua vontade de vencer, capacidade de trabalho, Joaquim José foi requerendo sesmarias a ponto de, já em 1847, ser o proprietário de uma porção delas, que se estendiam desde as montanhas minerosas do Urucum até os pantanais do Taquari, Paraguai e Jacadigo. No pé da serra do Urucum fez sua morada, fundando a Fazenda Piraputangas a poucos quilômetros de Albuquerque. A fazenda das Piraputangas passou a ser o núcleo de onde a prosperidade se irradiava para toda região, onde se abastecia a Vila de Corumbá e arredores. Necessário esclarecer que, em 1847, Corumbá ainda era um reduzido povoado, como bem narra Augusto Leverger (O Barão de Melgaço, de saudosa memória) no seu "Roteiro de Navegação do Rio Paraguai": (...) A sua posição é tão vantajosa quanto aprazível; o clima é sadio; o solo fértil; tem bons matos e proporções para o criação do gado; a pesca e a caça são abundantes. O terreno é calcário e é aqui que se fabrica o cal para as construções da Capital.Não obstante isso, a povoação em vez de prosperar, vai definhando. Estão caindo em ruínas os dois melhores edifícios, que são uma capelinha e um pequeno quartel militar; a população que pouco passa de cem almas, vive miseravelmente e mal produz o necessário para sua subsistência (...)" (Apud, Raul Silveira de Mello, Corumbá, Albuquerque e Ladário, p.134).
Nessa atmosfera pouco próspera, o Gomes, como assim era conhecido, vive a segunda fase da sua vida de homem de negócios. Em contraste com a Vila, prospera, formando latifúndios nos quais cria gado e planta milho, arroz, feijão, mandioca, etc., para abastecer os povoados e suas propriedades. E, em 1856, com a abertura do rio Paraguai à navegação, trazendo "ventos favoráveis a favor de Corumbá", pôde, ele, então, dar saída ao gado e se expandir ainda mais, fundando a fazenda do Barranco Branco (Porto Murtinho) e as fazendas Firme e Palmeiras, entre os rios Taquari e Negro.
A 21 de junho de 1862, o Governo Imperial outorgava-lhe, aos 37 anos, o título nobiliárquico de Barão de Vila Maria. Título que dizem, permanecia nas gavetas do Imperador e deveria ser entregue ao seu cunhado, Major João Carlos Pereira Leite. Seu brasão d’arma era mais característico e original pela feição regionalista que o vestia: "Em campo de ouro um índio corta cana-de-açúcar. Vê-se na campanha azul carregada de piraputangas (peixes) de prata, com barbatana e ‘cauda de golas’. Embaixo podia-se ler as divisas: ‘Forum extendere factis hoc vitutis opus’." Segundo José de Mesquita, o Barão demonstrava não ter sido orientado a escolher aquelas figuras esculpidas no seu brasão; ali elas estavam graças a sua "rude sinceridade, que fora no amanho do solo, na faina nobiliante do trabalho que se solidificara a sua fortuna e se alicerçara seu prestigio".
E deixa bem claro que o Barão de Vila Maria foi um "self made man" (se é que podemos chamar assim alguém que viveu naqueles tempos fáceis de aquisição de glebas) que alcançou posição sócio-econômica invejável dentro do contexto provincial. Lutou e deixou de ser um menino-diabo, um bastardo e um simples mascate renegado, tornando-se Barão, título que lhe deu o "status" de senhor rural, confirmando o poder da grande propriedade no cenário político e econômico do país. E, desmentindo, talvez, os pensamentos dos primos fidalgos da Jacobina, que deveriam imaginá-lo um caça-dotes, pronto a abocanhar o bom quinhão que a Baronesa receberia como herança.
O casal teve dois filhos: José Joaquim e Joaquim Eugênio.
O primeiro, assassinado na Fazenda das Piraputangas; o segundo, desbravador e continuador da obra do pai, depois da Guerra do Paraguai.




Texto extraído do livro: Pantanal, Gente, Tradição e História.

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