Quem sou eu

Escritor,roteirista e pesquisador da história e cultura pantaneira, recebeu vários e importantes prêmios literários, entre os quais o “Brasília de Ficção”, com o romance “Raízes do Pantanal”. O conto, “Nessa poeira não vem mais seu pai”, ficou como finalista entre 967 concorrentes do Concurso Guimarães Rosa, promovido pela “Radio Françe Internationale” em Paris. O mesmo conto transformou-se numa peça de teatro produzida pelo Grupo Teatral Minas da Imaginação e, roteirizado pelo próprio Autor, num curta metragem infanto-juvenil, “A poeira”, atualmente exibido no Programa Curta-Criança 3 da TV-Brasil do Rio de Janeiro. O Conto "O caso de Joanita" foi roteirizado para um média metragem, dirigido e produzido por Reynaldo Paes de Barros. A sua obra é referência em teses monográficas e vem sendo analisada e estudada nas universidades de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul. Tem artigos, crônicas, contos, ensaios publicados em jornais, revistas, sites da Internet e entrevistas dadas a televisões e rádios nacionais e internacionais. Considera-se um ser mais biodegradável do que biografável, pois nasceu em Corumbá,MS, Cidade-Natureza.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

terça-feira, 19 de abril de 2011

Luar de lua cheia

FRASES                                                            
 “As limitações corroem, fabricam múmias repetitivas e desgastam o sorriso das pessoas”. (Augusto César Proença).
“Se tudo já está escrito em forma de lei, eu quero mais alguma coisa que estabeleça a liberdade”. (Augusto César Proença).
 “Se algum dia eu parar de falar, busquem dentro de mim o canto de um sabiá. (Augusto César Proença).
“Quando a sirene do meu coração tocar acordes de primavera, me levantarei, me colocarei em posição de sentido e darei continência à vida. (Augusto César Proença).
“Se você quiser roubar o meu desespero, chegue mansinho como um pássaro e me cante o som do amanhecer”. (Augusto César Proença).
“No Pantanal passa boi, passa boiada... a natureza fica”. (Augusto César Proença).
“Ser ecologista é ter uma rosa plantada no coração”. (Augusto César Proença).










Teatro de bonecos

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Teatro de bonecos

CULTURA E CIDADANIA

Augusto César Proença


Existe um mito de que num país carente como o Brasil, “fazer cultura ou mexer com cultura” é um luxo, coisa quase impossível, para não dizer secundária. Dizem que cultura não enche barriga de ninguém, não dá moradia, saúde, segurança, não dá lucro nem voto, não resolve os básicos problemas do povo brasileiro que há anos se arrastam sem solução satisfatória.

Encoberto por esse mito, tão falso quanto vários outros fabricados pela sociedade em geral, o tempo passa e nada ou quase nada é feito para reverter o quadro de incompreensão cultural a que estamos submetidos, prejudicial a um país que necessita de Educação e de Cultura para se estabelecer com competência dentro do contexto da nova ordem econômica.

Há muitos anos que o modelo de políticas públicas para a cultura vem sendo destituído do seu papel central que é o de contribuir para a inclusão social. O Brasil, apesar das ditaduras e das redemocratizações, não democratizou como devia o modelo de políticas públicas, cujas ações basicamente continuam voltadas às atividades artísticas direcionadas a uma camada de intelectuais, empresários do setor cultural e artistas, deixando o povo marginalizado, fora do processo e entregue à sua própria história.

Os sucessivos debates em torno do financiamento, dos patrocínios e das leis de incentivo, embora necessárias, desgastam-se em discussões estéreis e provocam cada vez mais o distanciamento entre o setor cultural e a sociedade, gerando a tal incompreensão e reforçando a descrença na cultura como um elemento fundamental na formação do ser humano. Para que tantos patrocínios, tantos festivais, tantos museus, tantas leis, tantos projetos para conservação de patrimônios históricos, tantas mobilizações culturais se as necessidades básicas do povo brasileiro nas áreas de habitação, saúde, segurança, educação etc., não estão ainda resolvidas? – indagam muitos.

A esses incrédulos (e não são poucos), perguntamos: como construir uma sociedade justa e solidária sem o processo que privilegie os direitos fundamentais do ser humano? Nos tempos atuais, quando se fala muito em “cidadania”, deveríamos dar maior atenção à Cultura, com C maiúsculo, como forma de inclusão, libertação e desenvolvimento social e econômico. Povo sem cultura será sempre um povo amordaçado, sem voz e sem vez, que não se conhece, incapaz de reivindicar seus direitos e de conhecer os seus deveres. Será sempre um povo sem identidade própria, fadado a viver como “uma maria-vai-com-as-outras”, “pau-pra-toda-obra ou mão-de-obra barata”, encurralado feito gado e ainda por cima de tudo dependente de cestas básicas.

Cultura não é apenas entretenimento ou passatempo, como muitos pensam. É uma forma de educar através da música, da poesia, dos livros, do teatro, do cinema (no Brasil, segundo o IBGE, apenas 8% dos municípios possuem cinema e 19% teatro). Cultura é ensinar a ter bons hábitos e costumes, noções de valores, regras de conduta, de higiene, de saúde, de sistemas de crenças. É explicar que não se deve jogar lixo no chão, que é preciso plantar uma árvore e uma flor, respeitar o Patrimônio Público, a casa onde mora, a rua que é sua, o gramado do jardim, o banco da praça que alguém vai se sentar, ou dormir, por infelicidade do destino. É um veículo de transformação e de renovação. Representa um todo integrado em que cada pessoa articula-se com as demais. É exclusividade do ser humano, porque ele é quem faz Cultura para legar às gerações futuras.
Cultura é memória, história, filosofia, lazer, fonte de conhecimento para que o seu filho se insira com dignidade na nova era econômica e social que desponta no cenário mundial. É uma arma poderosa contra a violência e contra as drogas.


# Augusto César Proença é escritor, roteirista, pesquisador da história regional, autor de vários livros, entre os quais Pantanal, Gente, Tradição e História.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Ruínas da minha cidade

Ruínas da minha cidade
POEMAS 


ESPUMAS
Augusto César Proença

Dos seus olhos renascem chamas
daquele AMOR adormecido em mim.
Sem dizer palavras ele chega com
o violão debaixo do braço
o cheiro de pitanga na voz e
o beijo de maresia na boca.

ESPELHO

Augusto César Proença

Me olho no espelho e vejo um
Menino perdido nos sonhos.
Um homem canta uma canção ao longe,
Um velho me contempla de perto.
E agora?...
O que fazer com o resto do amanhã?...
Com a cortina de abismo que se abre aos poucos
E me projeta uma indescritível solidão?

QUANDO O VERÃO CHEGAR
Augusto César Proença

Quando o verão chegar
Quero ver os teus olhos brilharem de encantamento
E tuas mãos me pedirem um pouquinho mais de amor.
Aí, então, juro, não reclamarei dos presentes que de dei no passado,
Das lamúrias mentirosas, 
Dos beijos hipócritas,
Do choro de fantasia debaixo do travesseiro.
Te darei apenas um outro cantinho dentro de mim.



De manhanzinha minhas vizinhas de janela escutam Dilermando Reis
Depois o pombo parte para o voo da liberdade
E a pomba o acompanha...

segunda-feira, 11 de abril de 2011


Homenagem ao cantor francês Henri Salvador, um fã do Brasil, inspirador da Bossa Nova, que morreu em fevereiro de 2008, aos 90 anos, e chegou a viver no Rio de Janeiro durante 4 anos na década de 40. Foi um apaixonado pelo Rio e pela música brasileira. Gravou em seu álbum, Révérence, de 2002, duetos com Caetano Veloso e Gilberto Gil, que já o haviam homenageado em canções, como em Reconvexo. Henri Salvador nasceu na Guiana Francesa, em 18 de julho de 1917. Mudou-se para Paris aos 7 anos com a família e construiu sua carreira de compositor e cantor ao lado de grandes músicos do jazz americano, como Django Reinhardt e outros. Além de grande cantor Henri era exímio guitarrista. Introduziu o Rock na França em 1957 com Rock ano Roll Mops. Entre mais de 400 composições que assinou, interpretou ou colaborou, Henri Salvador fez sucesso com Syracusa, Zorro Est Arrivé, Le Lion Est Mort ce Soir, Mais Non Mais Non e várias outras.

BECO DAS GARRAFAS

Augusto César Proença

Houve um tempo que a Música Popular Brasileira, a nossa estimada MPB, andou bastante agitada.
De um lado estava a turma da Bossa nova e a patota rebelde dos roqueiros, ambos emergentes, pedindo passagem para ocupar o espaço na mídia e destronar os defensores do samba-canção, da chamada música de fossa, de dor de cotovelo ou de dor de corno mesmo, cujos principais interpretes, entre outros, eram três musas, Nora Ney, Maysa Matarazzo e Dolores Duran.
Estamos nos fins dos anos 50. JK no governo, lambretas roncantes, camisas vermelhas, juventude transviada compunham o cenário político-cultural que entraria em ebulição a partir de 1960.
Mas o embate musical não ficava só aí. Ainda havia a turma do “bregue romântico”, bem ao gosto do povão, com o baiano Anísio Silva liderando as paradas de sucesso com as músicas Interesseira e Alguém me disse, rivalizando com o cancioneiro da Rádio Nacional o também romântico, dono de sucessos, Nelson Gonçalves, cantando coisas como Vitrine e Escultura.
No Beco das Garrafas, no Bottle’s, um inferninho de Copacabana (inferninho era o nome que se dava a qualquer barzinho fechado, tipo boate), segundo um cronista da época “era uma festa que parecia que nunca ia ter hora, dia, ou tempo de acabar”. No seu pequeno espaço acontecia a melhor música que se podia ouvir naquela época.
Reunia-se o melhor da MPB e a disputa entre o Samba-Canção e a Bossa Nova nascente corria com muito barulho. Tanto, que o nome de Beco das Garrafadas (depois Beco das Garrafas) foi batizado por um famoso frequentador, o saudoso Sérgio Porto, nosso Stanislaw Ponte Preta, por causa das garrafas que os moradores dos edifícios arremessavam lá das janelas para acabar com o barulho que os boêmios faziam nas portas dos barzinhos, muitas vezes em altas madrugadas.
Realmente o Bottle’s era bárbaro! - como se dizia.
Maysa costumava dar uma canja quando ia ao Rio. Descabelada, linda de rosto, linda com aqueles olhos claros, mesmo com uns “uisques a mais nas gordurinhas do corpo cantava Felicidade Infeliz de sua autoria: “Felicidade, vamos fazer um trato/ manda ao menos um retrato/ para que eu veja com és”. Chorosa, tristonha, Maysa parecia que se despedia não só do samba-canção que saía de moda asfixiado por um novo ritmo, mas da própria vida que perderia alguns anos mais tarde num desastre sinistro, de automóvel, na Ponte Rio-Niterói.
Dolores, baixinha, cara redonda, morena, simpática, tinha voz de ave e cadeira cativa lá no Bottle’s. Cantava: “A gente briga/ diz tanta coisa que não quer dizer/ fica pensando que não vai sofrer/ que não faz mal se tudo terminar (...). Uma noite saiu de lá pra nunca mais voltar. Chegou em casa disse para a empregada: “Não me acorde. Vou dormir até morrer. E morreu! Era o dia 23 de outubro de 1959. Ela estava apenas com 29 anos de idade.
A Bossa Nova, com “uma voz, um cantinho e um violão” começou e se desenvolveu no Beco das Garrafas, no Bottle”s, principalmente. Tom Jobim, João Gilberto, Vinícius, Luiz Carlos Vinhas e outros, todas as noites, encontravam-se nesse recanto boêmio para criar os sucessos que até hoje são lembrados, apesar do abandono que a MPB vem sofrendo nos repertórios dos meios de comunicação de massa.
Nascia um novo ritmo, nova batida diferente, novo tema que falava de amores correspondidos a caminho do mar, deixando de lado os amores traídos e as tristezas: “Vai minha tristeza/ e diz a ela/ que sem ela não pode ser/ diz-lhe numa prece/ que ela regresse/ porque eu não posso mais sofrer”.
No Beco das Garrafas existiam quatro casas noturnas que se enfileiravam: o Ma Griffe, o Baccará, o Little Club e o Bottle”s, todas musicais, freqüentadas pela classe média carioca, gente que gostava de música, que curtia a noite então ainda nada violenta naqueles 49 passos contados e sem saída, que iam da Rua Duvivier, até um simples muro escuro e opressor.
Por ter sido o berço da Bossa Nova, local importantíssimo de um movimento artístico-cultural, e por ter passado por ali grandes nomes da MPB, o Beco hoje está tombado pelo Patrimônio Cultural Carioca. O espaço, dizem, vai ser revitalizado. Os barzinhos de outrora viraram casa de massagem, de show de “gogogirls”. A violência rola solta. É uma pena!
Mas não importa. Para quem o conheceu e tirou as casquinhas desse passado realmente glorioso, tanto em noites chuvosas quanto enluaradas, e retém na memória o esplendor daquele momento de transformação da música popular brasileira, sabe que ele, o Beco das Garrafas, não morreu, será sempre lembrado e eternizado pela beleza da letra desta música de Tom e Vinícius:“Dentro dos meus braços/ os abraços/ há de ser milhões de abraços/ apertado assim (...).
E agora Chega de Saudade.




sexta-feira, 8 de abril de 2011

Mural
Desarrumação sem vergonha...
Desarrumação. Pegando fresca....


A LENDA DO VENTO

Augusto César Proença

As pessoas da cidade contam que uma vez o sol se apagou, os dias ficaram negros e os homens tiveram que acender tochas para caçar.
Naquele tempo o vento morava com a sua família numa gruta de pedra debaixo de um morro alto que se avistava de longe nas noites de lua cheia.
Quando o vento era forte as pessoas da cidade viam um velho de barba branca e cabelos compridos-esvoaçantes. Quando o vento era fraco viam uma mulher bonita, que tinha nos olhos a cor roxa da flor de camalote. Quando era apenas ventinho que soprava, assim feito brisa, viam o filho do vento, mocinho magro, de olhar arregalado.
Certo dia um homem saiu cedo para caçar, passou o dia inteirinho andando e quando chegou nesse morro alto a tocha dele também se apagou e foi obrigado a entrar na gruta do vento.
O vento era velho festeiro. Vivia dando festas grandiosas e nesse dia a gruta dele estava toda iluminada de tochas. Ele dava festa de arromba para muitos bichos convidados. Tinha tatu, cotia, veado, onça, tamanduá, muitos e muitos bichos, até jacaré. Todos já se encontravam pra lá de tontos e empanturrados de tanto comer.
As pessoas da cidade falam que isso aconteceu há muitos e muitos anos e que o vento velho de tanto dar festas grandiosas gastou todo o dinheiro que tinha e logo morreu da doença chamada “Arrependimento de Pobreza”.
A gruta dele ficou durante um tempão fechada. Só se enxergava solidão e tristeza. Até que numa tarde veio um ventinho feito brisa e as pessoas da cidade reconheceram que era o filho do vento que ventava depois de ter passado grande período guardando luto fechado.
Só que o ventinho veio diferente daqueles outros tempos. Veio fazendo fofocas escandalosas por onde ventava. Só sabia fuxicar a vida dos outros com aquele olhar arregalado de vento que queria espalhar a maldade e a violência.
Se metia no vão das pernas das moças que iam à igreja; nas sacristias para ouvir cochichos de beatas e de padres; nos quintais para contar quantas calcinhas e cuecas estavam penduradas nos varais; entrava pelas frestas das janelas e surpreendia gente pelada se amando no calor da cama; gente safada, distribuindo propinas, passando a mão no dinheiro público lá no fundo dos escritorinhos; até as necessidades que os outros faziam sentados nos vasos - ele fuxicava. Ah, ventinho danado!... todos da cidade comentavam.
Um dia, de tanto olhar a vida dos outros e fazer fofocas que causavam brigas, mortes, desavenças, separações de amizades e de casamentos antigos, esse ventinho pegou reza braba e adoeceu. Não comeu. Não bebeu. Não dormiu. Foi se secando de tal maneira que morreu da tal doença chamada de “Praga Rogada”.
Então as pessoas da cidade deram vivas, dançaram, beberam, cantaram, comemoraram a liberdade resgatada por vários dias!
E até hoje a população fala (com riso e alegria) que desde a morte desse ventinho fofoqueiro ninguém mais brigou na cidade, os amantes retornaram prazerosos ao gozo do amor, o sol nunca mais se apagou, os homens não precisaram empunhar tochas iluminadas para caçar – o povo fala que tudo mudou, só três coisas continuaram rolando soltas na cidade: a propina, a violência, e a filhadaputice da roubalheira do dinheiro público no fundo dos escritorinhos.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

A COMITIVA

              Augusto César Proença

           Amassando macegas, chapiscando a cascaria nas águas das vazantes, rasgando “pirizeiros” amolecidos, meio sonolenta - lá vai ela.
          Pelo silêncio intercalado de berros, um ou outro aboiar de vaqueiro, a gente nota que se acomodou pelos caminhos, perdeu a esperteza de querer “furar” e agora segue tranqüila, acovardada debaixo do sol quente, obedecendo o chamado do som das buzinas e das sinetas penduradas nos pescoços erados dos “sinuelos”.
         De vez em quando um esparramo. Barulho de cascos, abanar de rabos, roçar de chifres – corpos que se espantam assustados com o assanho dos marimbondos e das abelhas aninhadas numa moita de capim. Mas logo se sossega e retorna à marcha aborrecida de quem se distancia da querência e vai triste, berrando um berro doído, cansada de tantas laçadas, de tantos gritos, de tantos atropelos de patas de cavalos, forçando-a para que saia das sombras dos capões onde, inutilmente, tenta se amoitar –  lá vai ela, a boiada.
        É imponente o porte do “ponteiro” que lhe serve de guia. Homem prático,  perdeu a vontade de ter pressa e se resignou com a paciência. O pala enrolado na cintura por cima da “guaiaca”, chapéu de carandá, calça arregaçada nas canelas, bem aprumado – lá vai ele, soando seu berrante.
        Semelhante a um andarilho traz na alma a cadência das vaquejadas, o desejo dos errantes e a responsabilidade dos homens sérios. Sabe que está guiando uma riqueza, então se esmera. Como um cavaleiro andante tem a amplidão do espaço sob as patas do seu cavalo. O comando das rédeas é dele e faz disso a razão do seu existir. De longe, desaparece no “entrevero”, de perto parece espantalho forrado de poeira: rosto vermelho do sol, barba por fazer, olhar cismado nas estradas por onde passa, garganta ressequida, guardando ainda o gosto amargo dos tererés.
        Não se esqueceu do laço, do “guampo”, da bombinha prateada, da cabaça do mate, do “alforje” na garupa com os “pareios” das roupas, do “sapicuá” com a farinha e a rapadura, do “maneador” comprido, do “piraim” que “estrala” como soberano. Diferente dos bois, ele não tem nenhuma querência. Seu lugar é o mundo, seu mundo é o vagar. A modéstia de ser e de sentir fez dele um instrumento sem ambição. Divide com a natureza o despojar e em cada sombra de capão desanda a filosofar.
       Independente e livre, ele segue a própria trilha.  E no orgulho dos caprichos consegue ter pose de varão. É fruto da terra, é paisagem da terra, é a própria terra. Confunde-se com ela e faz parte da sua canção. Decanta-a nos escuros da noite enquanto o churrasco se assa, a roda se forma nos galpões e de cada peito nasce uma estória pra contar – lá vai ele, o “ponteiro”.
         Por detrás dele segue a comitiva, lenta, como os passos dos bois. É formada de gente “famaná”, que o acompanha nas andanças, escolhida a dedo, boa de laço, “guapa”, não se “aguacha” assim à toa, tem fibra, tem orgulho, divide com ele as serventias; enquanto dois “fiadores” seguem logo atrás firmando a caminha da boiada,  os “meeiros” ocupam as laterais, fazendo o gado andar e, bem atrás, na culatra, vai o condutor e dois culateiros, empurrando as reses que atrasam, cada qual com jeito próprio de aboiar, criando uma sinfonia.
         Manejadores de laços, esses vaqueiros trazem nas palmas das mãos as marcas dos “telegramas”. Nos dedos, a magia de trançar os “tentos” e amarrar o nó das “ligeiras”. Entram no mato feito heróis, desbravam capões, atropelam reses e, já no largo, em plena corrida, a laçada se abre no ar para se cerrar nos chifres sem mordiscar as orelhas. Então gritam gritos de velhos ancestrais, comemorando façanhas de bugres.
          Quando em roda são alegres; sozinhos, meio que cismam. Cismam em cima dos cavalos, nas sucessivas andanças, olhos atentos na marcha da boiada, qualquerestouro” já levou laço,  qualquer extravio de animal eles percebem  e são capazes de afirmar até a era do “caborteiro” pela contagem dos anos nos anéis dos chifres. Fazem da profissão um exercício de lazer. O trabalho os conduz à diversão. São livres que nem pássaros, andejos como bichos, alegres feito a natureza – lá vai ela, a comitiva.
         Há de parar antes do sol morrer. Há de encerrar a boiada ainda com o cantar dos pássaros. Há de chegar com estralos de pirains, gritos, gauchadas, entreverada com os animais e no meio da poeira que se levantará da “encerra”, cobrindo o espaço do mangueiro, filtrando os raios do sol com as cores dos arco-íris.

Preparando o rango da comitiva


Glossário


Pirizeiro _conjunto de uma espécie arbórea conhecida como  piri, que só dá em terreno que nunca seca, de formato redondo, de onde o vaqueiro pega água limpa e fresca para o tereré. 

Furar _  É  quando uma rês escapa da vaquejada, em desabalada carreira.

Sinuelos _ Bois mansos, geralmente carreiros, que são utilizados como guias de uma boiada.

Ponteiro  _ É o vaqueiro que segue na frente de uma boiada, tocando o berrante. É o guia de uma comitiva.

Guaiaca _ É um cinto largo, de couro ou de camurça, provido de bolsinhos para guardar  dinheiro e objetos miúdos.  Serve também para o vaqueiro carregar revólver e munição.

Entrevero _ É estar no meio, entreverado com os animais e com os outros peões.

Guampo _ É feito de chifre de boi velho, utilizado para tomar tereré, água das baías e de pirizeiros.

Alforje _ Duplo saco de lona ou de couro, utilizado na parte de trás do arreio.

Pareios de roupas _ O mesmo que pares ou peças de roupas.

Sapicuá _ Espécie de embornal, onde se carrega a matula.

Maneador _  É uma corda comprida, de couro, utilizada para amarrar o animal numa árvore, num panlanque, com o objetivo de amansá-lo,  ou para amarrar as porteiras de vara do curral.

Piraim _ Espécie de chicote de cabo curto e corda de couro comprida, com o qual vaqueiro chicoteia o ar e faz estalar, produzindo um barulho de tiro.

Estrala _ O mesmo que estala.

Gente famaná _  Gente famosa

Guapa _  o mesmo que dizer: gente treinada, forte, valente.

Não se aguacha _  O mesmo que  dizer: não se cansa.

Fiadores _ São dois peões que seguem  logo atrás do guia, firmando a caminhada da boiada e vigiando a possível  fuga de alguma rês.    

Meeiros _ São peões que seguem nas laterais da boiada e servem para empurrar  o gado, fazê-lo andar.

Culateiros _ São dois peões que seguem ao lado do condutor, bem atrás da boiada, na culatra, empurrando a reses que atrasam.

Condutor _ É o  chefe da comitiva, quem contrata a peonada para fazer as empreitadas das conduções de boiadas. Quem forma a comitiva.

Telegramas _  São as marcas de um laço na palma da mão, quando  a corda corre  na mão de um vaqueiro em uma laçada e  queima em carne viva, deixando suas marcas.  

Tentos _ São tiras finas de couro já preparadas para trançar o laço.

Ligeiras _ São os nós falsos que os vaqueiros dão nos chifres dos baguais para que estes não carreguem o laço, quando soltos.

Estouro da boiada _ É quando a aboiada se assusta e sai da marcha em desabalada carreira, Foge para dentro dos capões (matos) e até arrebenta cerca de piquetes e de curral.

Caborteiro _ O mesmo que safado. Animal que não se pode confiar nele.

Encerra _ Duas mangas de cercas reforçadas, conhecidas como calefão, por onde o gado passa para entrar no curral.

(Toda comitiva tem o seu rancheiro (cozinheiro) que segue bem à frente para parar na sombra de capão, perto de uma baía ou mesmo de um pirizeiro para fazer a bóia).

Cargueiro _ Cavalo ou burro que vai com o rancheiro carregando a bruaca cheia de mantimentos e a carga da comitiva.

Bruaca _ Saco ou mala de couro cru usada para transporte de objetos e mercadorias.

Tropa de reforço _ Muares e cavalos resistentes que substituíram os animais que cansam durante as sucessivas marchas de uma comitiva.

Marcha _  Espaço percorrido pela boiada de um pouso a outro, no período de um dia.

Polaqueiro _ Cavalo ou burro que carrega o cincerro (sino) no pescoço, servindo de guia à tropa de reforço.


quarta-feira, 6 de abril de 2011

Queimada

VIOLA DE COCHO

As tocatas e os desafios com uma VIOLA DE COCHO surgiram em Corumbá diante das igrejas, ao ar livre, e mesmo no interior dos clubes e nos saraus das residências, sob a luz de toscos lampiões.
As festas, onde havia o Cururu e o Siriri, eram cheias de alegria e animação, faziam parte da diversão dos corumbaenses no início do século XX.
Ao som da VIOLA DE COCHO, instrumento fabricado manualmente pelo próprio cururueiro, de Chimbuva ou de Sarã, (antigamente as cordas eram de tripas de bugio), famosos cantadores fizeram proezas e improvisaram versinhos inesquecíveis como estes:


Quem tem mulher bonita                                                Bezerro de vaca preta
Traga presa na corrente                                                 Onça pintada não come
Quem tem amor guardado                                             Quem casa com mulher feia
Bota olho no Vicente!                                                    Não tem medo de outro homem.

Vitrina enlouquecida
Vitrina turbinada
PAZ

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Ilustração de Luciano Alonso, do meu livro Rodeio a Céu Aberto

“AS FOLHAS DOS ERVAIS”
                                                                               
                                                                                                                      
Os espanhóis ainda não tinham chegado ao império do Rei Branco, do Inca dos tesouros incalculáveis, onde os caminhos eram feitos sobre prata e as cidades se estendiam em torno de altares de ouro, e já os nativos dessa região peruana utilizavam de uma ervinha tenra para preparar uma bebida estimulante que a todos seduzia – e viciava.

Que folhas enigmáticas e misteriosas eram aquelas encontradas nos túmulos pré-colombianos, atestando o seu uso pelos Incas?

Caá!... respondiam os indígenas, cheios de colares e pulseiras brilhando à luz do sol, sem saber que traziam nos corpos ricos enfeites que causavam cobiça aos civilizados.

O certo é, que, muito mais tarde, também os índios brasileiros, habitantes da margem do Rio Paraná, foram observados consumindo essa erva nativa que forrava de verde os campos abertos daquela fronteira guarani.

O vocábulo caá é de origem indígena, significa cabaça (recipiente), que passou a designar o produto. Em torno desse vocábulo muitos outros nasceram e se proliferaram como uma constelação de estrelas. Muitos vilarejos cresceram sob o signo da erva-mate e hoje são cidades sul-mato-grossenses: Ponta Porã, Porto Murtinho, Bela Vista, Amambai, Antônio João, Dourados, Caarapó, Campanário, Iguatemi, Naviraí, Mundo Novo.

A força econômica da erva foi tanta, que o seu poder suplantou o do próprio Estado de Mato Grosso (integrado). Assim como instituía, destituía políticos do cargo, elegia deputados, senadores, governadores e juízes. Enfim, mandava e desmandava na política e na sociedade que dela dependia.

Em torno da erva também surgiram muitas lendas que se espalharam mundo afora. Lendas contadas na roda de um chimarrão ou de um tereré. Lendas e estórias fantásticas que falavam do fogo dos barbacuás, dos cantos dos Urus, das desavenças nos bolichos, dos lampiões que se acendiam e se apagavam sozinhos nos galpões dos ervateiros.

Até que um dia, assim como nascem os predestinados, nasceu um menino. Ele se criou nas ranchadas, ouvindo essas lendas e estórias contadas ao pé do fogo. Eram estórias dos homens que viviam no trabalho diário, a carregar nas costas quilos e mais quilos das folhas colhidas nos ervais daquele tempo. Tudo o menino escutava e registrava na sua cabecinha inteligente e viva.

Mas o menino não gostava de ouvir aqueles gemidos que saiam do peito dos homens que carregavam as ervas nas costas. Aquilo lhe dava pena, um sentimento de compaixão. Sempre que via as cenas desse espetáculo desumano ele, o menino, chorava.

Não gostava de ver o pai chegando sujo dos barbacuás, a roupa encardida, a cara salpicada de erva seca que colava no rosto magro. Muitas vezes, intoxicado pela sujeira, o pai tossia. Tossia uma tosse rouca e cuspia uma placa grudenta, nojenta, cilíndrica e esverdeada.

O que é isso pai?...
É a doença dos barbacuás, filho, seca tudo por dentro da gente!

O menino cresceu e os ervais foram entristecendo o seu olhar de jovem. Não queria ser homem de pés atolados no lodaçal feito caranguejo humano, bicho barbado de um mundo que ele começava a compreender e a rejeitar: não, não, ele não ia ser assim. Ficasse ali naquele rincão seria o avô, o pai, o tio, seria um “changa-y” qualquer.

Então, um dia, o menino enrolou sua trouxinha de roupa e partiu da região dos ervais. Mas partiu só de corpo, porque a alma ele deixou com seu querido povo fronteiriço.

Conheceu terrarias diferentes. Varou fronteiras desconhecidas. Cruzou-campo-trotou-mundo. Mas sempre a memória de artista lhe mandava de volta ao rincão amado como se fosse por uma imposição. Era quando a paixão crescia dentro dele e ele então pegava da pena e escrevia as lendas, todas as estórias que ouvira em criança.

O Uru aparecia e pousava na janela do seu quarto.  O vento haragano, que chegava lá da cordilheira andina, surgia, sacudindo as vidraças da sua sala. Paraguaios e brasileiros, os trabalhadores dos ervais, passavam suados pelo fundo do seu quintal, curvados de cansaço, gemendo gemidos de desilusão frente ao tratamento subhumano que lhe davam os patrões.  

A religiosidade fez morada no destino do jovem. Os olhos indagadores voltaram-se para o Alto. Sentia que com a Arte redescobriria o sertão que deixara um dia. Registraria nas páginas dos livros toda a “revolta pela gritante desigualdade existente entre os seres humanos”, todo o sentimento de justiça social que lhe batia constantemente e lhe abria o caminho para a criação de personagens embrutecidos que conhecera na infância.

E foi assim que o jovem se tornou senhor absoluto dos pagos fronteiriços. Dominou colinas, reencontrou planícies, reconheceu recôncavos. Varou varadouros e grotas encantadas, cantou a suavidade das belezas do sertão, as paisagens das estâncias. Foi gaudério apaixonado de todos os galpões da terra que amou e divulgou para o mundo.  Grande nas pesquisas! Imenso nas decisões! Tudo vasculhou com a sua caneta milagrosa de escritor-poeta, de homem livre, que amava o vazio aberto da querência, observador da vida, criador de estórias e lendas: verdadeiro trilhador de todos os caminhos.

Ofereço esta crônica ao escritor Hélio Serejo, aos trabalhadores dos ervais e ao valioso povo fronteiriço de Ponta Porã, pela grande conquista de um Decreto que reconhece o nosso tradicional Tereré como Patrimônio Imaterial de Mato Grosso do Sul.

Augusto César Proença é escritor, autor de Pantanal, Gente, Tradição e História, entre outros livros.
augustocproenca.blogspot.com/carandazal





“CARANDAZAL”
Para quem não sabe e nunca ouviu falar, CARANDAZAL é um conjunto de CARANDÁS, palmeiras nativas da região pantaneira. O Carandá (Copernicia alba) é muito resistente, suporta tanto as grandes enchentes como as queimadas das secas prolongadas. Dele os pantaneiros faziam esteios de casas, cumeeiras, caibros, vigas, ripas, telhas e paredes de ranchos, fabricavam pontes, porteiras de varas, mata-burros, postes para cercas, mangueiros e currais para os pequenos animais. Foi e ainda é um vegetal de grande utilidade nos pantanais da Nhecolândia, Paiaguás, Nabileque e outras regiões do município de Corumbá. Os artesãos utilizam as folhas do Carandá  para fazer abanicos, cestas, esteiras  e chapéus que o vaqueiros usam diariamente nos trabalhos de gado. Seu palmito com um favo de abelha Jati é repasto suculento e delicioso. Ele é soberano, sintetiza um oásis, costumam falar os nativos.

Carandazal submerso

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Desarrumação
Desarrumação
NESSA POEIRA NÃO VEM MAIS SEU PAI

Conto de Augusto César Proença

Nos galhos do velho tamarineiro, que costumava refrescar a água do poço ali atrás do rancho, periquitos ainda conversavam numa voz estridente e a boiada, chegando naquela horinha, enchia a tarde de ruídos, de vozes e gritos de vaqueiros cansados, vindos de longe.
O guri então parou de brincar com o carrinho, olhou a poeira que se erguia de dentro do capão e, como sempre fazia ao ver a vaquejada se aproximar da sede da fazenda, correu e foi chamar a mãe na cozinha:
__ Mãe, vem-vê, a boiada tá chegando.
__ Não quero vê, guri, vai brincá pra lá.
__ Vem-vê, mãe, a poeira!...
__ Já falei que não quero, vai lá pra fora, me deixa, nessa poeira não vem mais seu pai.
__ Se a senhora não quer, eu também não quero – disse o menino, emburrado, se encostando na porta da cozinha.
E olhando o corpo da mãe cada vez mais se afastar do fogão de lenha, de onde uma fumaça preta subia-invadindo o espaço apertado e escurecido, ele se lembrou do dia em que Zé Bento rompeu a sombra do tamarineiro e parou na porta da cozinha, o rosto ensombrecido, amassando com os dedos a aba encardida do chapéu de palha.
__ Fala seu Zé, quê-que já aconteceu? – perguntou a mãe.
__ Ele morreu, dona, tá lá estirado no largo, e eu vim pegar a carroça pra trazer o corpo.
Naquela noite, varreram malemá a salinha do rancho e ali mesmo fizeram o velório do pai. Em volta do caixão de tábuas finas, feito às pressas, acenderam quatro tocos de velas, cantaram, rezaram, noite inteira. O guri viu a mãe chorar um choro indignado. Gente lamentosa chegar de a pé, amontada, de toda parte por onde a notícia correu causando pesar.
Assim morto, com o clarão das velas projetando contra o seu rosto as sombras movediças dos que passavam por perto para vê-lo, o pai não parecia com aquele que saía com o filho na garupa do cavalo e ia lhe mostrar a seriema do largo, o cafezinho da baía, as marrequinhas que voavam e deixavam um rastro de zanga no céu. Não ia muito longe, é verdade, dava uma voltinha, voltava, que o filho era pequeno demais para poder alcançar o fim das léguas do patrão: elas continuavam além das cercas do piquete, varando capões, largos, cerrados e iam se perder lá longe, no silêncio dos brejos, onde a onça bebia água, o sapo namorava a sapa, e o jacaré com a jacaroa roncavam alumiados de lua.
Bugre taludo de forte, assim era o pai. Pegava no machado e deixava a lâmina tombar em cada gemido de peito aberto. Se por acaso ele, o filho, se sentava na porta da cozinha e ficava espiando as quantas batidas o machado dava para partir o tronco, o pai ralhava: " Sai daí, guri, é perigoso, pode pegar no olho..." Rachava a lenha e os cavacos secos espirravam como estrelas de pau. Subiam. Desciam. Misturavam-se com a grama, batiam nas galinhas que por ali passavam. E o guri, ansioso, esperava que de um daqueles pedaços nascesse o carrinho, que o pai fazia, para lhe dar de presente no Natal.
O baixeiro, a carona o arreio __ apertava tudo e o cavalo relinchava, olhando de banda.
O pelego, a badrana __ dava uma batidinha em cima e a tralha se estufava de fofa.
O cavalo baio, meio xucro, a espora comprida __uma estrela cadente no calcanhar do pé, riscando a terra.
Saía sempre no escuro da madrugada, com o cheiro do café recendendo no rancho e o com os gritos das aranquãs da mata. E quando chegava na malhada do gado, já uma luz minguada de sol raiava, aloitando com brisa, para ver quem secava mais ligeiro o brilho úmido do pasto, ungido de orvalho.
O laço, o guampo para o tereré, o sapicuá com a matula – tudo o pai levava. Não se esquecia do pala enrolado na cintura, que o tempo era filho da mãe de traiçoeiro, num instantinho cobria o céu de cinza e um vento frio chegava no largo, entanguindo a peonada desprevenida.
De tarde, voltava. Longe se escutava o estalo do piraim dele. Longe se via a poeira se aproximando vagarosa e se escutava também o clamor da mata, o grito dos homens conduzindo o gado, o canto dos pássaros solitários da tarde, os tropéis das patas raspando a terra, levantando a poeira que trazia o pai.
A poeira, para o filho, significava a volta do pai. Do ídolo chegando com eu rosto barbudo, seu cheiro de animal suado, sua pele queimada, o jeito meio-índio de chegar. Ocupava a fantasia do menino. Enchia-a de som, de cor, de mistério. Simbolizava a invisível aproximação do pai: o afago da sua mão pesada.
Nas noites de verão, quando os vaga-lumes tatuavam a sombra escura do tamarineiro e um vento-norte-suave-soprava, pai e filho se sentavam debaixo da velha árvore tomando a fresca. Então o pai contava estórias de bichos e de assombrações que vagueavam pelo Pantanal. Da anta amiga, que saía do mato e assobiava no largo chamando a gurizada; do bezerrinho, nascido com duas cabeças e seis patas; da vaca malhada, que cagava na panela e fazia beeé... beeé... feito um bezerro se sentindo perdido num recanto de curral. E contava do fogo dos enterros alteando um clarão fumoso no meio da noite; das almas penadas dos afogados, perpassando a noite dos corixos, perseguindo canoa de pescador; da manceba do padre, que virava mula-sem-cabeça e com seu casco fino coiceava criança levada; do cipó voador, carregando os velhos e os meninos, depois de mortos, lá para junto das estrelas. E acabava cantando cantigas para o filho dormir:
Vai papão, vai embora
de cima desse telhado,
deixa dormir o menino
um soninho sossegado.
Mas o guri não dormia durante as noites em que o gado passava preso no mangueiro. Ficava acordado, magnetizado pelos berros. Nem os morcegos voando rente ao seu corpo, nem gemidos e os suspiros de gozo vindos da cama dos pais, nem o barulho de corpo de cachorro se mexendo no calor do chão ou acuando bichos que cruzavam por perto, nem mesmo o silêncio atormentado daquele tênue rumor de água de corixo vazando – nada. Nada o perturbava. Deitado na rede, imóvel, como que encurralado num canto, junto às frestas dos carandás, ele só escutava os berros. Sentia-se misteriosamente ligado àquela berraria cadenciada, que lhe chegava mansa como o luar. Berros de bezerros perdidos, do gado todo preso, quebrado das carnes, saudoso de querência, das vacas parindo filhos molhados de sangue, dos touros disputando o cio delas e que num rumor enfurecido de chifres se debatiam e se empurravam violentamente contra as cercas. Os berros, começaram a alimentar seu sonho a partir do instante em que aprendera a andar e se tornara um guri barrigudinho. Um guri de rancho, rede e ranho no nariz. Que descobria a vida e o perigo do mundo povoado de lêndeas, larvas e vermes, a brincar pelo terreiro, comendo a terra úmida e fofa, meio adocicada e fresca do pé de erva-doce, lambendo titica de galinha, provando as bostas secas dos pequenos animais com os quais se entreverava: nu e coroado de moscas.
Olhos abertos, vagueando pelas palhas que cobriam o rancho, o guri só escutava esses berros. Todos os outros ruídos eram-lhe indiferentes e sequer davam-lhe receio, medo, temor. Eram ruídos rotineiros do mundo que o cercavam. Mas os berros, esses, o guri só os escutava assim, juntos, como uma cantilena, quando o pai e os vaqueiros chegavam na fazenda trazendo o gado para encerrá-lo no curral.
Amava os berros e estava sempre à espera deles. Cada vez com maior impaciência. E era com ela que aguardava o dia amanhecer nos bicos dos passarinhos, no latido do cachorro acuando sombras que acordavam, no rangido da cama do pai se levantando para o trabalho. Nessas horas, o guri, todo ele, era uma impaciência só, e sua alegria, tão grande, que se parecia com a felicidade. Sabia: mesmo antes do quebra-torto, com seu laço de mentira, acompanharia o pai para o curral: como um vaqueiro!
Ajoelhado na virilha de um tourinho, o pai gritava: faca! – e alguém aparecia para capar o tourinho. Os braços, as mãos, o rosto dele ficavam salpicados daquela seiva sanguinolenta que esguichava lá no fundo dos bagos talhados. Em seguida, ainda seguro na cola, passada por entre as pernas do animal, gritava: ferro! – e alguém aparecia para ferrar o coitado. Ferro quente. Que chiava, chamejava, esfumaçava no pêlo, fazendo o bicho revirar o branco dos olhos, espernear, babar, resfolegar o focinho na terra: ventas levantadas.
__ Feito, gran-puta! o pai ainda gritava, largando a cola do bicho e dando um eco quando o animal se erguia meio tonto, escoiceava os respingos do sangue e se entreverava no lote, ainda assustado.
Com as laçadas já prontas os vaqueiros atropelavam outros tourinhos. Corriam atrás deles. Os bichos, atordoados, enfileiravam-se numa corrida desesperada, redemoinhavam num remoinho sem rumo, caíam, se aprumavam, investiam contra os vaqueiros, tornavam a correr... o pai era o primeiro a pealar! A laçada, quicando rasteira, levantava um pó cinzento e se fechava na munheca de um deles. Que revirava de quatro, marcando seu tirador com o tranco do tirão.
__ Lindo tiro! Lindo tiro!...
Era o patrão que gritava lá de cima do brete, encerrando o espetáculo.
Então ele, o guri, corria ligeiro e apanhava os grãos jogados na terra. Lavava-os num balde d’água, retirava a gosma vermelha, depois os assava no estralejar da brasa que esquentava os ferros: " pois pirralho tem que comer saco de tourinho pra crescer e virar vaqueiro valente" __ o pai falava.
__ Fala seu Zé, fala que é mentira _ a mãe não acreditava.
__ Verdade, dona, não sou homem de mentira. No que correu atrás do boi arisco o cavalo pisou num buraco de tatu e jogou ele longe. Quebrou o pescoço na rodada. Lá mesmo estrebuchou.
Olhando a mãe, o guri ainda permaneceu na porta da cozinha por mais alguns segundos. Na sua cabeça fantasiosa desfilavam muitos pensamentos, que naquele momento lhe chegavam confusos, esfumaçados de fuligem e gordura. Torturou-o, porém, uma dúvida:
"Será que o cipó voador carregou o pai pra junto das estrelas do céu?... Se carregava velho, decerto também carregou ele, e nunca mais... nunca mais o pai ia voltar das estrelas".
E para que o primeiro soluço não o denunciasse como um guri chorão se afastou da porta da cozinha e voltou ao terreiro. Mas não quis olhar a boiada que se aproximava do mangueiro, também não quis ouvir os gritos, os assobios, os estalos dos pirains que lenhavam a tarde dourada. Pegou o carrinho, deu as costas e foi andando...
Ilustração de Luciano Alonso, do meu livro RODEIO A CÉU ABERTO

segunda-feira, 28 de março de 2011


                                                          SNACK  BAR
                                  
                                                          Conto de Augusto César Proença
           
Abri. Não que a campainha tivesse tocado muitas vezes, apenas duas. Dois toques rápidos, nervosos, impacientes. Abri depois de olhar pelo olho mágico e de perguntar quem era.
           Mesmo sem tocá-lo, o cara me deu a impressão que tinha as mãos frias e suadas. Segurava uma pasta. Estava pálido. Pensei: deve ser algum vendedor. Mas logo ele foi dizendo: Sou amigo do Edu, aquele de “Ontem”.
             Do Edu?...perguntei. E ele: trabalho com o Edu, o senhor não se lembra?
            Não me lembrava.  Parado no meio da porta fiquei sem saber o que responder, esperando chegar a lembrança salvadora que me pudesse esclarecer quem era esse tal de Edu de “Ontem”.
            O Edu poxa!...O rapaz deu um risinho simpático, tentando abrir um canal maior de comunicação, querendo talvez que eu lhe dissesse, ah... trabalha com o Edu?... Pois então, por favor, vamos entrar! ... Mas eu não falei nada, continuei plantado ali no meio da porta e ele, notando a minha hesitação, explicou: o Edu do Snack Bar, aquele gaúcho!
            “Snack Bar?...”
             É. O Edu! Ele mesmo me mandou aqui (abriu a pasta) mandou entregar isto pro senhor (ergueu o livro), esqueceu “Ontem” lá em cima do balcão.
            Você está enganado, cara, esse livro não é meu – eu disse, tentando fechar a porta.
            Mas ele insistiu: é sim, é do senhor. O Edu mandou entregar pro senhor!
            Apavorado de ter sido acometido por uma amnésia parcial repentina, busquei na lembrança o que havia feito “Ontem”. Acordei cedo, é verdade. A campainha do despertador me botou fora da cama e às 7 horas já estava a caminho da repartição (existiria algum Edu na minha repartição?)... Me lembro também que fui almoçar com um amigo no centro da cidade e depois dei umas voltas para fazer hora (encontrei algum Edu nesse intervalo?)... À tarde, voltei para casa. E à noite? O que fiz à noite? Que eu saiba não tinha ido para nenhum bar, fiquei em casa, botando a papelada em dia, telefonando... (telefonei para algum Edu?)... Edu... Edu... Edu... Porra! Como é que tinha me esquecido do Edu? ... Logo dele, um cara legal a pampa!
      De repente me veio a figura grandalhona, meio calva, boa-praça, que ficava na registradora perto da entrada... (o rapaz me olhava agora de maneira diferente, como se encontrasse no meu rosto um lampejo de luz)... O Edu gaúcho, do Snack Bar! Brincalhão, sorridente, arranjava mulher para os fregueses mais chegados, gostava de discutir futebol, tinha paciência com os bêbados de fim de noite, aqueles chatos que lhe aporrinhavam o saco... (S’ack!... S’ack!... acendendo-apagando... S’ack!), isso mesmo, faltava um N naquele letreiro luminoso que explodia cores na minha juventude e iluminava as noites mornas, filosofadas, arrotadas, cruzadas de risos, de papos e de cuba-libres que não me levaram a nada: Snack Bar! Ficava na Raul Pompéia, quase esquina da Francisco Sá, toldo listrado, mesas esparramadas na calçada, lambretas e motocas roncantes. Eu ia lá nos fins de semana (agora me lembro) chegava sempre tarde, já meio calibrado, encontrava as mesas ocupadas e me sentava num banco diante da registradora.
           O bar era refúgio dos desajustados, QG dos angustiados, de gente que falava abobrinha a noite inteira ouvindo samba canção, um ou outro “rock” que era sufocado pelo barulho das motocicletas (o rapaz continuava a me olhar) Snack Bar!... Uma vida, uma época! Mas, cara... você  disse “Ontem”?
            Sim, “Ontem”, respondeu ele, o senhor estava bebão, não se lembra? Fui eu que ajudei o senhor a se levantar. Caía-pra-cá-caia-pra-lá, então o Edu pediu, leva ele pra casa. No caminho o senhor quis brigar com um padeiro que não queria lhe dar um pedaço de pão (riu). Chutou um cachorro. Lá uma hora entrou num botequim que já estava fechando e pediu um uísque para o português que também não quis dar e então o senhor puxou o bigode dele e saiu correndo e eu corri atrás do senhor, porque senão o senhor ia cair de tão bêbado que estava, bebida demais faz mal, disse ele, me olhando.
            Senti certa preocupação naquele rosto pálido que dizia umas coisas que não me lembrava. Tinha uma feição conhecida. Me era familiar aquele olhar amendoado, as sobrancelhas grossas, a boca riscando o rosto quando dava um sorriso...  as mãos ... o cabelo encaracolado... Não, essa não!... Não é possível!... Seria ele?... Perguntei: Por acaso você é aquele que me servia as cubas-libres com as mãos frias de tanto pegar nos copos gelados? Sou o Júlio – ele respondeu, agora com o risco de sorriso se brindo numa satisfação.
           
             Então você é o Júlio?... Olhei as mãos de Júlio (estavam frias?), em seguida para o livro envelhecido. Realmente era meu (agora me lembro) era meu aquele livro ensebado e amarelecido que Júlio me ostentava, sorrindo. Tantos anos perdidos... Procurei-o em todos os cantos da minha pequena biblioteca, nos recantos mais escondidos e...  Mas com é que pode, isso aconteceu há mais de 30 anos, Júlio!
            Que nada, foi “Ontem”, então o senhor não se lembra?
            Comecei a desconfiar do rapaz. Aquilo podia ser um golpe, pretexto para entrar no meu apartamento e me roubar. Júlio podia estar com uma faca escondida debaixo da calça larga, um revólver metido naquelas dobras, uma pistola na pasta, qualquer coisa assim. Poderia estar drogado, sim, devia estar viciado em drogas (seria um assaltante?) Com certeza alguém lhe falou onde eu morava... Mas quem? Quem é que tinha dado  o meu endereço? O Edu? ...  Eu não via o Edu há mais de 30 anos! Ah, talvez alguém que possivelmente resolveu mandá-lo para me... Sim, Júlio poderia estar esquizofrênico como tantos por aí!... Usava uma camisa meio suja, estava com a barba por fazer e, engraçado, só agora percebia: não tinha envelhecido quase nada. Tinha o mesmo olhar suave de samba canção. O mesmo corpo moldado para o uniforme de garçom, a mesma fisionomia, os mesmos lábios finos... (Júlio estaria com fome?)... Era bem possível que queria dinheiro, me dar uma facada entre tantas que já recebera na vida.
            Você não está sentindo o livro pesar na mão, Júlio? – eu perguntei – me dá ele aqui, foi muito gentil em trazê-lo.
            Parado, o rapaz ainda ficou esperando que eu o mandasse entrar, os olhos (eram verdes?) encavavam as olheiras fundas, acentuavam a palidez do rosto.
            Muito obrigado, Júlio, foi muita bondade sua, não precisava se incomodar tanto...
            Fiquei segurando o livro. Ele diante de mim e não se despedia. Já estava com o livro entregue, por que não ia embora? Auxiliei-o: quer mais alguma coisa?
            Sempre assim. Sempre fazem isso, aguardam a hora e zás!... dão a facada final. Ia pedir licença para fechar a porta, falar que tinha coisas a fazer, algum trabalho, quando ele tirou do bolso e me mostrou um objeto brilhante.
             Júlio! – eu gritei – Como conseguiu isso? Fala, fala, fala!...
            O senhor me deu de presente, não se lembra?
             Eu?!
            É. Me deu “Ontem”. Pensei que ia deixar o senhor só na portaria, mas caía-pra-cá-caía-pra-lá, então resolvi subir. Aí o senhor me convidou pra entrar, não queria ficar sozinho de jeito nenhum, bebida demais faz mal, é isso que dá.
             E você entrou no meu apartamento?...
             Entrei, o senhor não se lembra do que aconteceu depois?
             Não. Não me lembro de nada, conta me conta logo o que aconteceu depois?...
            Depois, bem... quer dizer... depois... o senhor me deu este presente, esta lembrancinha aqui.
            O meu isqueiro de ouro, de estimação? Presente da minha avó?
             É.
             Você está mentindo, Júlio!
            Verdade!
            Eu não te dei nada, você me roubou, já sei, foi você quem roubou o meu isqueiro. Você é um ladrão, Júlio, é um ladrão! Se manda daqui, já! Se manda, já!... Vai!... Vai embora!...

            Acendi um cigarro. O isqueiro estava frio como a mão de Júlio. Diante do computador fiquei pensando como é que eu ia terminar a história. Terminaria com Júlio falando a verdade ou mentindo? Não teria sido cruel com ele?..  Cometido uma injustiça em bater-lhe com a porta na cara? Uma ingratidão em tomar-lhe o isqueiro com rompância da sua mão? Afinal o que significava aquele isqueiro de ouro para mim a não ser uma estimação efêmera, já corroída e desgastada pelo tempo, que perdera a função, a hora, a vez?
          Na minha imaginação chegavam agora os passos de Júlio andando pelas madrugadas com o meu isqueiro de ouro no bolso, tantos anos sem perdê-lo e, o mais curioso, sem vendê-lo. Na minha imaginação entravam palavras, sentimentos, mentiras e verdades de uma época em que Júlio me forçava a lembrar dela com um livro ensebado e um isqueiro de ouro, símbolos esquecidos e sepultados há muito. Com certeza guardara esses objetos apenas como uma recordação das minhas noites malucas do Snack Bar. Talvez como lembrança da minha pessoa, da solidão de um porre tomado há mais de 30 anos... “Ontem”, como ele dizia.
Permaneci um pouco mais pensando e olhando para o computador. Do vizinho chegavam ruídos de TV, de gente falando alto, um barulho que me pareceu ser da porta do elevador.
Em seguida dois toques nervosos, impacientes me fizeram pular da cadeira e abrir a porta sem ao menos olhar pelo olho mágico e perguntar quem era.
            Júlio! Eu sabia cara, eu sabia que você ia atender a força da minha imaginação.
            Ele segurava a mesma pasta e me olhava indeciso com aquele olhar fundo e sereno.
            Me desculpe - eu disse, cortando-lhe o embaraço, me desculpe. Só quero lhe dizer uma coisa: toma, segura, o isqueiro é seu, pode ficar com ele, agora eu me lembro, eu... eu...
            Mas ele não me deixou acabar de falar. Afastou-se ligeiro como se visse um demônio envelhecido na sua frente. Eu gritei: É seu Júlio, toma, espera, não vai ainda, não vai ainda!...
            Ele abriu a porta do elevador.
           Espera Júlio, espera! – exclamei, ainda gritando.
            Ele não esperou. Então corri atrás dele como se corresse atrás da minha própria juventude para não deixá-la escapar assim tão de repente.
            Espera Júlio!... Espera um momento só!...
            Mas as minhas mãos cravadas, toda a força dos meus braços não foram suficientes para abrir a porta do elevador e detê-lo. Ela já estava fechada. E assim fechei também os meus olhos e vi, nitidamente, aquele Suave Olhar de Samba Canção desaparecer, desta vez para sempre.