Quem sou eu

Escritor,roteirista e pesquisador da história e cultura pantaneira, recebeu vários e importantes prêmios literários, entre os quais o “Brasília de Ficção”, com o romance “Raízes do Pantanal”. O conto, “Nessa poeira não vem mais seu pai”, ficou como finalista entre 967 concorrentes do Concurso Guimarães Rosa, promovido pela “Radio Françe Internationale” em Paris. O mesmo conto transformou-se numa peça de teatro produzida pelo Grupo Teatral Minas da Imaginação e, roteirizado pelo próprio Autor, num curta metragem infanto-juvenil, “A poeira”, atualmente exibido no Programa Curta-Criança 3 da TV-Brasil do Rio de Janeiro. O Conto "O caso de Joanita" foi roteirizado para um média metragem, dirigido e produzido por Reynaldo Paes de Barros. A sua obra é referência em teses monográficas e vem sendo analisada e estudada nas universidades de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul. Tem artigos, crônicas, contos, ensaios publicados em jornais, revistas, sites da Internet e entrevistas dadas a televisões e rádios nacionais e internacionais. Considera-se um ser mais biodegradável do que biografável, pois nasceu em Corumbá,MS, Cidade-Natureza.

segunda-feira, 28 de março de 2011


                                                          SNACK  BAR
                                  
                                                          Conto de Augusto César Proença
           
Abri. Não que a campainha tivesse tocado muitas vezes, apenas duas. Dois toques rápidos, nervosos, impacientes. Abri depois de olhar pelo olho mágico e de perguntar quem era.
           Mesmo sem tocá-lo, o cara me deu a impressão que tinha as mãos frias e suadas. Segurava uma pasta. Estava pálido. Pensei: deve ser algum vendedor. Mas logo ele foi dizendo: Sou amigo do Edu, aquele de “Ontem”.
             Do Edu?...perguntei. E ele: trabalho com o Edu, o senhor não se lembra?
            Não me lembrava.  Parado no meio da porta fiquei sem saber o que responder, esperando chegar a lembrança salvadora que me pudesse esclarecer quem era esse tal de Edu de “Ontem”.
            O Edu poxa!...O rapaz deu um risinho simpático, tentando abrir um canal maior de comunicação, querendo talvez que eu lhe dissesse, ah... trabalha com o Edu?... Pois então, por favor, vamos entrar! ... Mas eu não falei nada, continuei plantado ali no meio da porta e ele, notando a minha hesitação, explicou: o Edu do Snack Bar, aquele gaúcho!
            “Snack Bar?...”
             É. O Edu! Ele mesmo me mandou aqui (abriu a pasta) mandou entregar isto pro senhor (ergueu o livro), esqueceu “Ontem” lá em cima do balcão.
            Você está enganado, cara, esse livro não é meu – eu disse, tentando fechar a porta.
            Mas ele insistiu: é sim, é do senhor. O Edu mandou entregar pro senhor!
            Apavorado de ter sido acometido por uma amnésia parcial repentina, busquei na lembrança o que havia feito “Ontem”. Acordei cedo, é verdade. A campainha do despertador me botou fora da cama e às 7 horas já estava a caminho da repartição (existiria algum Edu na minha repartição?)... Me lembro também que fui almoçar com um amigo no centro da cidade e depois dei umas voltas para fazer hora (encontrei algum Edu nesse intervalo?)... À tarde, voltei para casa. E à noite? O que fiz à noite? Que eu saiba não tinha ido para nenhum bar, fiquei em casa, botando a papelada em dia, telefonando... (telefonei para algum Edu?)... Edu... Edu... Edu... Porra! Como é que tinha me esquecido do Edu? ... Logo dele, um cara legal a pampa!
      De repente me veio a figura grandalhona, meio calva, boa-praça, que ficava na registradora perto da entrada... (o rapaz me olhava agora de maneira diferente, como se encontrasse no meu rosto um lampejo de luz)... O Edu gaúcho, do Snack Bar! Brincalhão, sorridente, arranjava mulher para os fregueses mais chegados, gostava de discutir futebol, tinha paciência com os bêbados de fim de noite, aqueles chatos que lhe aporrinhavam o saco... (S’ack!... S’ack!... acendendo-apagando... S’ack!), isso mesmo, faltava um N naquele letreiro luminoso que explodia cores na minha juventude e iluminava as noites mornas, filosofadas, arrotadas, cruzadas de risos, de papos e de cuba-libres que não me levaram a nada: Snack Bar! Ficava na Raul Pompéia, quase esquina da Francisco Sá, toldo listrado, mesas esparramadas na calçada, lambretas e motocas roncantes. Eu ia lá nos fins de semana (agora me lembro) chegava sempre tarde, já meio calibrado, encontrava as mesas ocupadas e me sentava num banco diante da registradora.
           O bar era refúgio dos desajustados, QG dos angustiados, de gente que falava abobrinha a noite inteira ouvindo samba canção, um ou outro “rock” que era sufocado pelo barulho das motocicletas (o rapaz continuava a me olhar) Snack Bar!... Uma vida, uma época! Mas, cara... você  disse “Ontem”?
            Sim, “Ontem”, respondeu ele, o senhor estava bebão, não se lembra? Fui eu que ajudei o senhor a se levantar. Caía-pra-cá-caia-pra-lá, então o Edu pediu, leva ele pra casa. No caminho o senhor quis brigar com um padeiro que não queria lhe dar um pedaço de pão (riu). Chutou um cachorro. Lá uma hora entrou num botequim que já estava fechando e pediu um uísque para o português que também não quis dar e então o senhor puxou o bigode dele e saiu correndo e eu corri atrás do senhor, porque senão o senhor ia cair de tão bêbado que estava, bebida demais faz mal, disse ele, me olhando.
            Senti certa preocupação naquele rosto pálido que dizia umas coisas que não me lembrava. Tinha uma feição conhecida. Me era familiar aquele olhar amendoado, as sobrancelhas grossas, a boca riscando o rosto quando dava um sorriso...  as mãos ... o cabelo encaracolado... Não, essa não!... Não é possível!... Seria ele?... Perguntei: Por acaso você é aquele que me servia as cubas-libres com as mãos frias de tanto pegar nos copos gelados? Sou o Júlio – ele respondeu, agora com o risco de sorriso se brindo numa satisfação.
           
             Então você é o Júlio?... Olhei as mãos de Júlio (estavam frias?), em seguida para o livro envelhecido. Realmente era meu (agora me lembro) era meu aquele livro ensebado e amarelecido que Júlio me ostentava, sorrindo. Tantos anos perdidos... Procurei-o em todos os cantos da minha pequena biblioteca, nos recantos mais escondidos e...  Mas com é que pode, isso aconteceu há mais de 30 anos, Júlio!
            Que nada, foi “Ontem”, então o senhor não se lembra?
            Comecei a desconfiar do rapaz. Aquilo podia ser um golpe, pretexto para entrar no meu apartamento e me roubar. Júlio podia estar com uma faca escondida debaixo da calça larga, um revólver metido naquelas dobras, uma pistola na pasta, qualquer coisa assim. Poderia estar drogado, sim, devia estar viciado em drogas (seria um assaltante?) Com certeza alguém lhe falou onde eu morava... Mas quem? Quem é que tinha dado  o meu endereço? O Edu? ...  Eu não via o Edu há mais de 30 anos! Ah, talvez alguém que possivelmente resolveu mandá-lo para me... Sim, Júlio poderia estar esquizofrênico como tantos por aí!... Usava uma camisa meio suja, estava com a barba por fazer e, engraçado, só agora percebia: não tinha envelhecido quase nada. Tinha o mesmo olhar suave de samba canção. O mesmo corpo moldado para o uniforme de garçom, a mesma fisionomia, os mesmos lábios finos... (Júlio estaria com fome?)... Era bem possível que queria dinheiro, me dar uma facada entre tantas que já recebera na vida.
            Você não está sentindo o livro pesar na mão, Júlio? – eu perguntei – me dá ele aqui, foi muito gentil em trazê-lo.
            Parado, o rapaz ainda ficou esperando que eu o mandasse entrar, os olhos (eram verdes?) encavavam as olheiras fundas, acentuavam a palidez do rosto.
            Muito obrigado, Júlio, foi muita bondade sua, não precisava se incomodar tanto...
            Fiquei segurando o livro. Ele diante de mim e não se despedia. Já estava com o livro entregue, por que não ia embora? Auxiliei-o: quer mais alguma coisa?
            Sempre assim. Sempre fazem isso, aguardam a hora e zás!... dão a facada final. Ia pedir licença para fechar a porta, falar que tinha coisas a fazer, algum trabalho, quando ele tirou do bolso e me mostrou um objeto brilhante.
             Júlio! – eu gritei – Como conseguiu isso? Fala, fala, fala!...
            O senhor me deu de presente, não se lembra?
             Eu?!
            É. Me deu “Ontem”. Pensei que ia deixar o senhor só na portaria, mas caía-pra-cá-caía-pra-lá, então resolvi subir. Aí o senhor me convidou pra entrar, não queria ficar sozinho de jeito nenhum, bebida demais faz mal, é isso que dá.
             E você entrou no meu apartamento?...
             Entrei, o senhor não se lembra do que aconteceu depois?
             Não. Não me lembro de nada, conta me conta logo o que aconteceu depois?...
            Depois, bem... quer dizer... depois... o senhor me deu este presente, esta lembrancinha aqui.
            O meu isqueiro de ouro, de estimação? Presente da minha avó?
             É.
             Você está mentindo, Júlio!
            Verdade!
            Eu não te dei nada, você me roubou, já sei, foi você quem roubou o meu isqueiro. Você é um ladrão, Júlio, é um ladrão! Se manda daqui, já! Se manda, já!... Vai!... Vai embora!...

            Acendi um cigarro. O isqueiro estava frio como a mão de Júlio. Diante do computador fiquei pensando como é que eu ia terminar a história. Terminaria com Júlio falando a verdade ou mentindo? Não teria sido cruel com ele?..  Cometido uma injustiça em bater-lhe com a porta na cara? Uma ingratidão em tomar-lhe o isqueiro com rompância da sua mão? Afinal o que significava aquele isqueiro de ouro para mim a não ser uma estimação efêmera, já corroída e desgastada pelo tempo, que perdera a função, a hora, a vez?
          Na minha imaginação chegavam agora os passos de Júlio andando pelas madrugadas com o meu isqueiro de ouro no bolso, tantos anos sem perdê-lo e, o mais curioso, sem vendê-lo. Na minha imaginação entravam palavras, sentimentos, mentiras e verdades de uma época em que Júlio me forçava a lembrar dela com um livro ensebado e um isqueiro de ouro, símbolos esquecidos e sepultados há muito. Com certeza guardara esses objetos apenas como uma recordação das minhas noites malucas do Snack Bar. Talvez como lembrança da minha pessoa, da solidão de um porre tomado há mais de 30 anos... “Ontem”, como ele dizia.
Permaneci um pouco mais pensando e olhando para o computador. Do vizinho chegavam ruídos de TV, de gente falando alto, um barulho que me pareceu ser da porta do elevador.
Em seguida dois toques nervosos, impacientes me fizeram pular da cadeira e abrir a porta sem ao menos olhar pelo olho mágico e perguntar quem era.
            Júlio! Eu sabia cara, eu sabia que você ia atender a força da minha imaginação.
            Ele segurava a mesma pasta e me olhava indeciso com aquele olhar fundo e sereno.
            Me desculpe - eu disse, cortando-lhe o embaraço, me desculpe. Só quero lhe dizer uma coisa: toma, segura, o isqueiro é seu, pode ficar com ele, agora eu me lembro, eu... eu...
            Mas ele não me deixou acabar de falar. Afastou-se ligeiro como se visse um demônio envelhecido na sua frente. Eu gritei: É seu Júlio, toma, espera, não vai ainda, não vai ainda!...
            Ele abriu a porta do elevador.
           Espera Júlio, espera! – exclamei, ainda gritando.
            Ele não esperou. Então corri atrás dele como se corresse atrás da minha própria juventude para não deixá-la escapar assim tão de repente.
            Espera Júlio!... Espera um momento só!...
            Mas as minhas mãos cravadas, toda a força dos meus braços não foram suficientes para abrir a porta do elevador e detê-lo. Ela já estava fechada. E assim fechei também os meus olhos e vi, nitidamente, aquele Suave Olhar de Samba Canção desaparecer, desta vez para sempre.


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