Quem sou eu

Escritor,roteirista e pesquisador da história e cultura pantaneira, recebeu vários e importantes prêmios literários, entre os quais o “Brasília de Ficção”, com o romance “Raízes do Pantanal”. O conto, “Nessa poeira não vem mais seu pai”, ficou como finalista entre 967 concorrentes do Concurso Guimarães Rosa, promovido pela “Radio Françe Internationale” em Paris. O mesmo conto transformou-se numa peça de teatro produzida pelo Grupo Teatral Minas da Imaginação e, roteirizado pelo próprio Autor, num curta metragem infanto-juvenil, “A poeira”, atualmente exibido no Programa Curta-Criança 3 da TV-Brasil do Rio de Janeiro. O Conto "O caso de Joanita" foi roteirizado para um média metragem, dirigido e produzido por Reynaldo Paes de Barros. A sua obra é referência em teses monográficas e vem sendo analisada e estudada nas universidades de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul. Tem artigos, crônicas, contos, ensaios publicados em jornais, revistas, sites da Internet e entrevistas dadas a televisões e rádios nacionais e internacionais. Considera-se um ser mais biodegradável do que biografável, pois nasceu em Corumbá,MS, Cidade-Natureza.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

NESSA POEIRA NÃO VEM MAIS SEU PAI

Conto de Augusto César Proença

Nos galhos do velho tamarineiro, que costumava refrescar a água do poço ali atrás do rancho, periquitos ainda conversavam numa voz estridente e a boiada, chegando naquela horinha, enchia a tarde de ruídos, de vozes e gritos de vaqueiros cansados, vindos de longe.
O guri então parou de brincar com o carrinho, olhou a poeira que se erguia de dentro do capão e, como sempre fazia ao ver a vaquejada se aproximar da sede da fazenda, correu e foi chamar a mãe na cozinha:
__ Mãe, vem-vê, a boiada tá chegando.
__ Não quero vê, guri, vai brincá pra lá.
__ Vem-vê, mãe, a poeira!...
__ Já falei que não quero, vai lá pra fora, me deixa, nessa poeira não vem mais seu pai.
__ Se a senhora não quer, eu também não quero – disse o menino, emburrado, se encostando na porta da cozinha.
E olhando o corpo da mãe cada vez mais se afastar do fogão de lenha, de onde uma fumaça preta subia-invadindo o espaço apertado e escurecido, ele se lembrou do dia em que Zé Bento rompeu a sombra do tamarineiro e parou na porta da cozinha, o rosto ensombrecido, amassando com os dedos a aba encardida do chapéu de palha.
__ Fala seu Zé, quê-que já aconteceu? – perguntou a mãe.
__ Ele morreu, dona, tá lá estirado no largo, e eu vim pegar a carroça pra trazer o corpo.
Naquela noite, varreram malemá a salinha do rancho e ali mesmo fizeram o velório do pai. Em volta do caixão de tábuas finas, feito às pressas, acenderam quatro tocos de velas, cantaram, rezaram, noite inteira. O guri viu a mãe chorar um choro indignado. Gente lamentosa chegar de a pé, amontada, de toda parte por onde a notícia correu causando pesar.
Assim morto, com o clarão das velas projetando contra o seu rosto as sombras movediças dos que passavam por perto para vê-lo, o pai não parecia com aquele que saía com o filho na garupa do cavalo e ia lhe mostrar a seriema do largo, o cafezinho da baía, as marrequinhas que voavam e deixavam um rastro de zanga no céu. Não ia muito longe, é verdade, dava uma voltinha, voltava, que o filho era pequeno demais para poder alcançar o fim das léguas do patrão: elas continuavam além das cercas do piquete, varando capões, largos, cerrados e iam se perder lá longe, no silêncio dos brejos, onde a onça bebia água, o sapo namorava a sapa, e o jacaré com a jacaroa roncavam alumiados de lua.
Bugre taludo de forte, assim era o pai. Pegava no machado e deixava a lâmina tombar em cada gemido de peito aberto. Se por acaso ele, o filho, se sentava na porta da cozinha e ficava espiando as quantas batidas o machado dava para partir o tronco, o pai ralhava: " Sai daí, guri, é perigoso, pode pegar no olho..." Rachava a lenha e os cavacos secos espirravam como estrelas de pau. Subiam. Desciam. Misturavam-se com a grama, batiam nas galinhas que por ali passavam. E o guri, ansioso, esperava que de um daqueles pedaços nascesse o carrinho, que o pai fazia, para lhe dar de presente no Natal.
O baixeiro, a carona o arreio __ apertava tudo e o cavalo relinchava, olhando de banda.
O pelego, a badrana __ dava uma batidinha em cima e a tralha se estufava de fofa.
O cavalo baio, meio xucro, a espora comprida __uma estrela cadente no calcanhar do pé, riscando a terra.
Saía sempre no escuro da madrugada, com o cheiro do café recendendo no rancho e o com os gritos das aranquãs da mata. E quando chegava na malhada do gado, já uma luz minguada de sol raiava, aloitando com brisa, para ver quem secava mais ligeiro o brilho úmido do pasto, ungido de orvalho.
O laço, o guampo para o tereré, o sapicuá com a matula – tudo o pai levava. Não se esquecia do pala enrolado na cintura, que o tempo era filho da mãe de traiçoeiro, num instantinho cobria o céu de cinza e um vento frio chegava no largo, entanguindo a peonada desprevenida.
De tarde, voltava. Longe se escutava o estalo do piraim dele. Longe se via a poeira se aproximando vagarosa e se escutava também o clamor da mata, o grito dos homens conduzindo o gado, o canto dos pássaros solitários da tarde, os tropéis das patas raspando a terra, levantando a poeira que trazia o pai.
A poeira, para o filho, significava a volta do pai. Do ídolo chegando com eu rosto barbudo, seu cheiro de animal suado, sua pele queimada, o jeito meio-índio de chegar. Ocupava a fantasia do menino. Enchia-a de som, de cor, de mistério. Simbolizava a invisível aproximação do pai: o afago da sua mão pesada.
Nas noites de verão, quando os vaga-lumes tatuavam a sombra escura do tamarineiro e um vento-norte-suave-soprava, pai e filho se sentavam debaixo da velha árvore tomando a fresca. Então o pai contava estórias de bichos e de assombrações que vagueavam pelo Pantanal. Da anta amiga, que saía do mato e assobiava no largo chamando a gurizada; do bezerrinho, nascido com duas cabeças e seis patas; da vaca malhada, que cagava na panela e fazia beeé... beeé... feito um bezerro se sentindo perdido num recanto de curral. E contava do fogo dos enterros alteando um clarão fumoso no meio da noite; das almas penadas dos afogados, perpassando a noite dos corixos, perseguindo canoa de pescador; da manceba do padre, que virava mula-sem-cabeça e com seu casco fino coiceava criança levada; do cipó voador, carregando os velhos e os meninos, depois de mortos, lá para junto das estrelas. E acabava cantando cantigas para o filho dormir:
Vai papão, vai embora
de cima desse telhado,
deixa dormir o menino
um soninho sossegado.
Mas o guri não dormia durante as noites em que o gado passava preso no mangueiro. Ficava acordado, magnetizado pelos berros. Nem os morcegos voando rente ao seu corpo, nem gemidos e os suspiros de gozo vindos da cama dos pais, nem o barulho de corpo de cachorro se mexendo no calor do chão ou acuando bichos que cruzavam por perto, nem mesmo o silêncio atormentado daquele tênue rumor de água de corixo vazando – nada. Nada o perturbava. Deitado na rede, imóvel, como que encurralado num canto, junto às frestas dos carandás, ele só escutava os berros. Sentia-se misteriosamente ligado àquela berraria cadenciada, que lhe chegava mansa como o luar. Berros de bezerros perdidos, do gado todo preso, quebrado das carnes, saudoso de querência, das vacas parindo filhos molhados de sangue, dos touros disputando o cio delas e que num rumor enfurecido de chifres se debatiam e se empurravam violentamente contra as cercas. Os berros, começaram a alimentar seu sonho a partir do instante em que aprendera a andar e se tornara um guri barrigudinho. Um guri de rancho, rede e ranho no nariz. Que descobria a vida e o perigo do mundo povoado de lêndeas, larvas e vermes, a brincar pelo terreiro, comendo a terra úmida e fofa, meio adocicada e fresca do pé de erva-doce, lambendo titica de galinha, provando as bostas secas dos pequenos animais com os quais se entreverava: nu e coroado de moscas.
Olhos abertos, vagueando pelas palhas que cobriam o rancho, o guri só escutava esses berros. Todos os outros ruídos eram-lhe indiferentes e sequer davam-lhe receio, medo, temor. Eram ruídos rotineiros do mundo que o cercavam. Mas os berros, esses, o guri só os escutava assim, juntos, como uma cantilena, quando o pai e os vaqueiros chegavam na fazenda trazendo o gado para encerrá-lo no curral.
Amava os berros e estava sempre à espera deles. Cada vez com maior impaciência. E era com ela que aguardava o dia amanhecer nos bicos dos passarinhos, no latido do cachorro acuando sombras que acordavam, no rangido da cama do pai se levantando para o trabalho. Nessas horas, o guri, todo ele, era uma impaciência só, e sua alegria, tão grande, que se parecia com a felicidade. Sabia: mesmo antes do quebra-torto, com seu laço de mentira, acompanharia o pai para o curral: como um vaqueiro!
Ajoelhado na virilha de um tourinho, o pai gritava: faca! – e alguém aparecia para capar o tourinho. Os braços, as mãos, o rosto dele ficavam salpicados daquela seiva sanguinolenta que esguichava lá no fundo dos bagos talhados. Em seguida, ainda seguro na cola, passada por entre as pernas do animal, gritava: ferro! – e alguém aparecia para ferrar o coitado. Ferro quente. Que chiava, chamejava, esfumaçava no pêlo, fazendo o bicho revirar o branco dos olhos, espernear, babar, resfolegar o focinho na terra: ventas levantadas.
__ Feito, gran-puta! o pai ainda gritava, largando a cola do bicho e dando um eco quando o animal se erguia meio tonto, escoiceava os respingos do sangue e se entreverava no lote, ainda assustado.
Com as laçadas já prontas os vaqueiros atropelavam outros tourinhos. Corriam atrás deles. Os bichos, atordoados, enfileiravam-se numa corrida desesperada, redemoinhavam num remoinho sem rumo, caíam, se aprumavam, investiam contra os vaqueiros, tornavam a correr... o pai era o primeiro a pealar! A laçada, quicando rasteira, levantava um pó cinzento e se fechava na munheca de um deles. Que revirava de quatro, marcando seu tirador com o tranco do tirão.
__ Lindo tiro! Lindo tiro!...
Era o patrão que gritava lá de cima do brete, encerrando o espetáculo.
Então ele, o guri, corria ligeiro e apanhava os grãos jogados na terra. Lavava-os num balde d’água, retirava a gosma vermelha, depois os assava no estralejar da brasa que esquentava os ferros: " pois pirralho tem que comer saco de tourinho pra crescer e virar vaqueiro valente" __ o pai falava.
__ Fala seu Zé, fala que é mentira _ a mãe não acreditava.
__ Verdade, dona, não sou homem de mentira. No que correu atrás do boi arisco o cavalo pisou num buraco de tatu e jogou ele longe. Quebrou o pescoço na rodada. Lá mesmo estrebuchou.
Olhando a mãe, o guri ainda permaneceu na porta da cozinha por mais alguns segundos. Na sua cabeça fantasiosa desfilavam muitos pensamentos, que naquele momento lhe chegavam confusos, esfumaçados de fuligem e gordura. Torturou-o, porém, uma dúvida:
"Será que o cipó voador carregou o pai pra junto das estrelas do céu?... Se carregava velho, decerto também carregou ele, e nunca mais... nunca mais o pai ia voltar das estrelas".
E para que o primeiro soluço não o denunciasse como um guri chorão se afastou da porta da cozinha e voltou ao terreiro. Mas não quis olhar a boiada que se aproximava do mangueiro, também não quis ouvir os gritos, os assobios, os estalos dos pirains que lenhavam a tarde dourada. Pegou o carrinho, deu as costas e foi andando...

Nenhum comentário:

Postar um comentário