Quem sou eu

Escritor,roteirista e pesquisador da história e cultura pantaneira, recebeu vários e importantes prêmios literários, entre os quais o “Brasília de Ficção”, com o romance “Raízes do Pantanal”. O conto, “Nessa poeira não vem mais seu pai”, ficou como finalista entre 967 concorrentes do Concurso Guimarães Rosa, promovido pela “Radio Françe Internationale” em Paris. O mesmo conto transformou-se numa peça de teatro produzida pelo Grupo Teatral Minas da Imaginação e, roteirizado pelo próprio Autor, num curta metragem infanto-juvenil, “A poeira”, atualmente exibido no Programa Curta-Criança 3 da TV-Brasil do Rio de Janeiro. O Conto "O caso de Joanita" foi roteirizado para um média metragem, dirigido e produzido por Reynaldo Paes de Barros. A sua obra é referência em teses monográficas e vem sendo analisada e estudada nas universidades de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul. Tem artigos, crônicas, contos, ensaios publicados em jornais, revistas, sites da Internet e entrevistas dadas a televisões e rádios nacionais e internacionais. Considera-se um ser mais biodegradável do que biografável, pois nasceu em Corumbá,MS, Cidade-Natureza.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Ilustração de Luciano Alonso, do meu livro Rodeio a Céu Aberto

“AS FOLHAS DOS ERVAIS”
                                                                               
                                                                                                                      
Os espanhóis ainda não tinham chegado ao império do Rei Branco, do Inca dos tesouros incalculáveis, onde os caminhos eram feitos sobre prata e as cidades se estendiam em torno de altares de ouro, e já os nativos dessa região peruana utilizavam de uma ervinha tenra para preparar uma bebida estimulante que a todos seduzia – e viciava.

Que folhas enigmáticas e misteriosas eram aquelas encontradas nos túmulos pré-colombianos, atestando o seu uso pelos Incas?

Caá!... respondiam os indígenas, cheios de colares e pulseiras brilhando à luz do sol, sem saber que traziam nos corpos ricos enfeites que causavam cobiça aos civilizados.

O certo é, que, muito mais tarde, também os índios brasileiros, habitantes da margem do Rio Paraná, foram observados consumindo essa erva nativa que forrava de verde os campos abertos daquela fronteira guarani.

O vocábulo caá é de origem indígena, significa cabaça (recipiente), que passou a designar o produto. Em torno desse vocábulo muitos outros nasceram e se proliferaram como uma constelação de estrelas. Muitos vilarejos cresceram sob o signo da erva-mate e hoje são cidades sul-mato-grossenses: Ponta Porã, Porto Murtinho, Bela Vista, Amambai, Antônio João, Dourados, Caarapó, Campanário, Iguatemi, Naviraí, Mundo Novo.

A força econômica da erva foi tanta, que o seu poder suplantou o do próprio Estado de Mato Grosso (integrado). Assim como instituía, destituía políticos do cargo, elegia deputados, senadores, governadores e juízes. Enfim, mandava e desmandava na política e na sociedade que dela dependia.

Em torno da erva também surgiram muitas lendas que se espalharam mundo afora. Lendas contadas na roda de um chimarrão ou de um tereré. Lendas e estórias fantásticas que falavam do fogo dos barbacuás, dos cantos dos Urus, das desavenças nos bolichos, dos lampiões que se acendiam e se apagavam sozinhos nos galpões dos ervateiros.

Até que um dia, assim como nascem os predestinados, nasceu um menino. Ele se criou nas ranchadas, ouvindo essas lendas e estórias contadas ao pé do fogo. Eram estórias dos homens que viviam no trabalho diário, a carregar nas costas quilos e mais quilos das folhas colhidas nos ervais daquele tempo. Tudo o menino escutava e registrava na sua cabecinha inteligente e viva.

Mas o menino não gostava de ouvir aqueles gemidos que saiam do peito dos homens que carregavam as ervas nas costas. Aquilo lhe dava pena, um sentimento de compaixão. Sempre que via as cenas desse espetáculo desumano ele, o menino, chorava.

Não gostava de ver o pai chegando sujo dos barbacuás, a roupa encardida, a cara salpicada de erva seca que colava no rosto magro. Muitas vezes, intoxicado pela sujeira, o pai tossia. Tossia uma tosse rouca e cuspia uma placa grudenta, nojenta, cilíndrica e esverdeada.

O que é isso pai?...
É a doença dos barbacuás, filho, seca tudo por dentro da gente!

O menino cresceu e os ervais foram entristecendo o seu olhar de jovem. Não queria ser homem de pés atolados no lodaçal feito caranguejo humano, bicho barbado de um mundo que ele começava a compreender e a rejeitar: não, não, ele não ia ser assim. Ficasse ali naquele rincão seria o avô, o pai, o tio, seria um “changa-y” qualquer.

Então, um dia, o menino enrolou sua trouxinha de roupa e partiu da região dos ervais. Mas partiu só de corpo, porque a alma ele deixou com seu querido povo fronteiriço.

Conheceu terrarias diferentes. Varou fronteiras desconhecidas. Cruzou-campo-trotou-mundo. Mas sempre a memória de artista lhe mandava de volta ao rincão amado como se fosse por uma imposição. Era quando a paixão crescia dentro dele e ele então pegava da pena e escrevia as lendas, todas as estórias que ouvira em criança.

O Uru aparecia e pousava na janela do seu quarto.  O vento haragano, que chegava lá da cordilheira andina, surgia, sacudindo as vidraças da sua sala. Paraguaios e brasileiros, os trabalhadores dos ervais, passavam suados pelo fundo do seu quintal, curvados de cansaço, gemendo gemidos de desilusão frente ao tratamento subhumano que lhe davam os patrões.  

A religiosidade fez morada no destino do jovem. Os olhos indagadores voltaram-se para o Alto. Sentia que com a Arte redescobriria o sertão que deixara um dia. Registraria nas páginas dos livros toda a “revolta pela gritante desigualdade existente entre os seres humanos”, todo o sentimento de justiça social que lhe batia constantemente e lhe abria o caminho para a criação de personagens embrutecidos que conhecera na infância.

E foi assim que o jovem se tornou senhor absoluto dos pagos fronteiriços. Dominou colinas, reencontrou planícies, reconheceu recôncavos. Varou varadouros e grotas encantadas, cantou a suavidade das belezas do sertão, as paisagens das estâncias. Foi gaudério apaixonado de todos os galpões da terra que amou e divulgou para o mundo.  Grande nas pesquisas! Imenso nas decisões! Tudo vasculhou com a sua caneta milagrosa de escritor-poeta, de homem livre, que amava o vazio aberto da querência, observador da vida, criador de estórias e lendas: verdadeiro trilhador de todos os caminhos.

Ofereço esta crônica ao escritor Hélio Serejo, aos trabalhadores dos ervais e ao valioso povo fronteiriço de Ponta Porã, pela grande conquista de um Decreto que reconhece o nosso tradicional Tereré como Patrimônio Imaterial de Mato Grosso do Sul.

Augusto César Proença é escritor, autor de Pantanal, Gente, Tradição e História, entre outros livros.
augustocproenca.blogspot.com/carandazal



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