"EU QUERO PASSAR COM A MINHA DOR..."
Augusto César Proença
(Assistindo ao programa "Esquenta!", da Regina Casé na Tv Globo, vi Maria Betânia cantar "A Flor e o Espinho", de Nelson Cavaquinho, fiquei com saudade do tempo em que eu o conheci quando cantava no famoso Bar Zicartola, centro do Rio de Janeiro, e resolvi retirar do baú esta antiga crônica escrita em homenagem a ele, Nelson, o profeta dos desenganos, menestrel na arte de criar samba, representante grau cem da nossa MPB).
Então lá vai:
O seu legado material foi quase nada, apenas uma pequena pensão no
Antigo INPS e uma casa modesta da COHAB em Vila Esperança, subúrbio carioca. O espiritual, no entanto, foi vasto e produtivo, com centenas de produções musicais que enriqueceram a Música Popular Brasileira.
Estamos falando de Nelson Antônio da Silva, o Nelson Cavaquinho, sambista, compositor, que nasceu no Rio de Janeiro, ali pelas imediações da Praça da Bandeira, no dia 29 de outubro de 1911.
Filho de tocador de tuba da banda da PM e de mãe paraguaia, de quem herdou os traços e a cor marcante da herança indígena guarani, Nelson Cavaquinho começou a vida no duro batente de uma fábrica de tecidos, até entrar para o Batalhão de Cavalaria da PM e poder, com menos sufoco, ajudar no orçamento da família.
Ele mesmo dizia que a sua vida de militar foi um redundante fracasso e se não fosse o "xadrez" do batalhão, do qual era assíduo freqüentador, não teria feito muitos sambas de sucesso que hoje são lembrados e cantados por artistas dispostos a resgatar os maiores talentos da Música Popular Brasileira.
Boêmio por natureza, Nelson muitas vezes se atacava e desistia das monótonas rondas noturnas que era obrigado a fazer montado num cavalo garboso, para tomar uns tragos com amigos como Cartola, Carlos Cachaça, Zé da Zilda e outros. O cavalo ficava amarrado numa cerca do Morro da Mangueira. Não se sabe como, em certas noites, o animal conseguia escapar da corda e voltar certinho para a estrebaria do quartel da PM e ele, Nelson, nessas madrugadas, seguia uma escolta direto para o "xadrez" do batalhão, onde passava semanas e aproveitava para compor mais um de seus memoráveis sambas.
Mas não parava por aí as gandaias do nosso compositor. Além dos bares da Mangueira, frequentava os da Praça Tiradentes, na época, também um reduto de gente sensível como ele, repleta de artistas e de boêmios compulsivos. Num desses botecos, costumava se encontrar com Guilherme de Brito, que depois do expediente da famosa Casa Edson (uma casa de disco onde trabalhava) partia para o botequim a fim de se encontrar com o parceiro de tantas músicas inesquecíveis: "A Flor e o Espinho, por exemplo.
Dizem que Nelson deixou o cavaquinho e optou pelo violão (tocava apenas com dois dedos, o polegar e o indicador), já na maturidade. Era um homem sem compromisso com as coisas materiais. No tempo das vacas magras, para pagar as dívidas acumuladas, vendia sambas e, quando a situação melhorava dava parceria a quem se encontrava em necessidade. Foi uma das atrações do lendário Bar Zicartola, na Rua da Carioca, bar que ficou famoso na década de 60, de propriedade de Cartola e da dona Zica, sua esposa. Tinha uma voz rouca, inconfundível, um coração grandioso: uma roda de samba dentro dele!
Deixou centenas de músicas gravadas, de excelentes qualidades. Em 1946, Cyro Monteiro gravou duas de suas composições: Rugas e Degraus da Vida (de parceria com César Brasil e Antônio Braga), mas Nelson só se tornaria famoso em 1965, ao participar do show Rosa de Ouro, tendo como intérprete a saudosa Elizeth Cardoso.
As suas composições estão recheadas de frases lindas e líricas, como estas: "nossos barracos são castelos na nossa imaginação"... "quando eu passo perto das flores quase elas dizem assim: vai que amanhã enfeitaremos o seu fim"... "as rugas fizeram residência no meu rosto"... "tire o teu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor..."
Cigarros, bebidas, altas madrugadas, vida rolando, forma de viver a sua felicidade, compondo em mesas de bares, sempre ao lado do seu inseparável violão, Nelson viveu até o dia em que foi encontrado morto em sua cama pela companheira com que vivera seus últimos anos, vitimado por um enfisema pulmonar.
Era o dia 18 de fevereiro de 1986. Tinha 74 anos quando tirou o seu sorriso do caminho e entrou para a história da Música Popular Brasileira.
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